sexta-feira, 3 de julho de 2015

Sobre reflexões e longas profundos: Martyrs

Quanto horror somos capazes de suportar?

Então.

Esse, provavelmente, será o primeiro texto deste blog em que realmente não discorrerei sobre carros ou motos correndo. 

E também não tocarei no assunto "automobilismo".

É isso aí. Este blog é meu e escrevo a merda que eu quiser. Já disse isso antes e, neste artigo, isso se fará ainda mais claro do que antes.

Mas há um motivo muito bom para fazê-lo, isso eu garanto.

Sabem, há coisa de 2 ou 3 semanas, conheci uma moça chamada Patrícia. Conversamos e nos entendemos muito bem até aqui. E ela me indicou um longa para que eu assistisse: O thriller "Martyrs", um filme francês, datado de 2008 e com direção de Pascal Laugier. Um filme que me surpreendeu mais do que qualquer outro jamais o fizera. Ao longo de meus efêmeros 22 anos, porém, além de Martyrs, somente outro filme hoje tem de mim a devida admiração pela profundidade mostrada. Talvez eu ainda discorra sobre este longa noutro texto. 

Deixo clara aqui uma coisa: Quem estiver a ler esse texto não deve esperar uma crítica de cinema, com análise do roteiro, atuação dos atores e atrizes, nada. Aqui discorrerei sobre as inúmeras reflexões que este filme causa.

Outro aviso: Não me absterei de contar "spoilers". Então, se quiserem ver o filme antes de ler meu texto, estejam à vontade para fazê-lo agora. E não reclamem depois se tiverem lido o texto sem assistir ao longa.

A questão do começo continua. Quanto horror somos capazes de suportar?

Vejam o filme e descubram por vocês mesmos.

Sem mais delongas, vamos a ele.

O filme "Martyrs" é, sem dúvida, uma masterpiece, pois nos faz, gradativamente, compreender todo um esquema de exploração do sofrimento alheio, mantido pela personagem apenas referida como "Mademoiselle" (Catherine Bégin).

Primeiro estágio gradativo - horror

O filme começou com sequências assustadoras, de fato, e faz jus ao gênero. E ele não deu trégua, o horror está presente durante quase toda a fita, ao menos durante 40 ou 50 minutos desde o começo. 

A protagonista, uma jovem criança chamada Lucie Jurin (Mylène Jampanoï), fugiu de uma carceragem onde era mantida presa, sem contato com o mundo exterior, sentada e acorrentada numa cadeira, onde sofria abusos físicos constantes. A menina foi hospedada em um orfanato e conheceu Anna Assaoui (Erika Scott). Mas as coisas pareciam não estar bem para Lucie, pois ela era aterrorizada por uma criatura medonha, em forma de mulher, cheia de retalhos e cicatrizes.

15 anos depois, a jovem Lucie havia crescido e foi até a casa dos Belfond, uma família aparentemente comum e normal. Chacinou a família inteira com uma escopeta. Lucie, porém, sabia o que estava fazendo. Os Belfond, acreditava ela, eram responsáveis pelo abuso que ela havia sofrido na infância. Ao mesmo tempo, Lucie constantemente era assombrada tanto pela mulher desfigurada quanto pelo passado sombrio por ela vivido no cárcere de quinze anos antes. Toda aquela situação parecia assustadora, de fato, pois a mulher a agredia fisicamente e os flashbacks eram um boicote psicológico. Junto dela, também estava Anna Assaoui, sua colega de orfanato e agora parceira num relacionamento amoroso. 

Até então, pensamos que a mulher retalhada era alguma entidade demoníaca a quem Lucie e Anna serviam e para quem deveriam entregar pessoas mortas, para satisfazer sua fome de sangue. Ou ao menos era a pista que parecia ser dada para mim. 

Segundo estágio gradativo - indignação.

Neste estágio, descobrimos que tudo o que Lucie sofreu no seu cárcere era, na verdade, uma atividade financiada por alguma organização poderosa. 

Gabrielle Belfond estava viva e acordou junto aos cadáveres de seus familiares. Lucie não a havia matado de fato. Anna tentou protegê-la, mas acabou sendo inútil. Lucie terminou o que havia começado, matando-a com pauladas na cabeça. Depois, começou a se ferir e se machucar propositalmente, num estado psicótico. Descobrimos então que a mulher retalhada que atormentava Lucie era, na verdade, uma projeção de seus maiores medos, desencadeada com o sofrimento pelo qual ela havia passado. A própria, obviamente, não tinha consciência disso, e seu comportamento psicótico a colocou contra Anna. Lucie já não aguentava mais aquilo e rasgou a própria garganta, tentando se livrar do sofrimento com a morte.

Anna ficou atormentada com a carnificina que vira naquela casa. Mas conseguiu dormir. No dia seguinte, descobriu um porão dentro de um armário de cozinha (pode não ser um armário de cozinha, mas é o que eu lembro, então, paciência). O porão dava para um corredor macabro, com imagens de criaturas humanas em estados deploráveis.

Ao final do corredor, uma escada que levava  para um compartimento subterrâneo. Anna desceu as escadas e se deparou com uma sala sombria, com uma cadeira. Abaixo, um buraco com um balde, que provavelmente servia para as necessidades fisiológicas da moça que estava sentada na cadeira, Sarah. Ela estava muito magra e tinha uma venda de metal nos olhos, assim como uma barra de metal acoplada em sua cintura. Anna a tirou dali e tentou cuidar de seus ferimentos e banhá-la, mas não adiantou. 

A menina parecia sofrer do mesmo problema de Lucie. Ao invés de uma mulher retalhada, porém, Sarah via insetos. E os insetos tentavam devorá-la. Sarah tentou usar um facão de cozinha para cortar o próprio braço e impedir que os insetos lhe devorassem por inteira. Contudo, um grupo de homens e mulheres de preto organizados e armados adentraram a casa e mataram Sarah. Então, uma deles abordou Anna e a interrogou sem dar tempo para que ela se explicasse. 

Então, a levou para dentro do porão através do armário. Enquanto isso, colocaram uma mesa e cadeiras, sentaram Anna em uma delas e a outra serviu para uma senhora idosa que apareceu dentro do porão, diante de todos. Ela sentou-se de frente para Anna e falou-lhe de Lucie Jurin, sobre sua fuga do cárcere 15 anos antes. Explicou-lhe que ela havia fugido numa época em que seu pessoal não era tão organizado. Então, explicou como seu objetivo centralizava na em trancar mulheres em situações de crueldade extrema para extrair seu sofrimento e torná-las verdadeiras mártires. E que já haviam feito os mesmos tipos de experimentos antes com homens e crianças, mas os resultados não eram tão "promissores" quanto os das mulheres. Mas a maioria, segundo ela, havia enlouquecido e enfrentado seus piores medos em comportamentos psicóticos.

Até aquele momento, era impossível não lembrar dos métodos cruéis mostrados em filmes como "Jogos Mortais" e "O Albergue", por exemplo, ainda mais porque a busca pelo sofrimento alheio parecia fútil e simplesmente cruel e sádica como no segundo. A indignação atingiu níveis alarmantes em meus olhos e pensamento.

Terceiro estágio gradativo - transcendência

Impossível não sentir seu senso de justiça ser tremendamente violado até esse momento do filme, a menos que você seja um(a) sádico ou que seja indiferente ao sofrimento, isso partindo do pressuposto que você se envolveu com o filme como eu me envolvi. É preciso certa dose de sensibilidade, eu diria.

A idosa também explicou a Anna que o mundo em que vivemos está repleto de vítimas, de pessoas que sucumbiam ante às dificuldades. E que mártires eram raros. A mensagem é forte e é verdadeira, mas em meio ao clima tenso e horroroso da primeira hora do filme, é virtualmente impossível absorver a essência daquilo, a menos que sua psiquê tenha adquirido proporções divinas.

Terminada a conversa, Anna foi nocauteada e levada até o compartimento abaixo deles pelas escadas. Foi sentada e acorrentada na cadeira e começou com sua sina de sofrimento. Era questão de tempo até enlouquecer como as outras a cada gota de dor extraída de seu interior. Então, seus dias ali dentro passaram a ser intercalações entre alimentação, abusos físicos, limpeza do corpo e remoção dos resíduos fisiológicos do balde onde ela fazia suas necessidades. Tudo feito de forma rudimentar enquanto ela tentasse resistir ao sofrimento que lhe era imposto.

Todas até este estágio haviam enlouquecido. Era só questão de tempo até Anna sofrer com uma psicose também. Com os abusos físicos, Anna teve a face desfigurada. Seu corpo idem. Seu cabelo foi totalmente cortado. O que restou de Anna foi apenas uma coisa: Lucidez. Ela não enlouqueceu. Começava a entender o motivo pelo qual ali estava. Que não deveria resistir à dor, que deveria aceitá-la de bom grado. Seu comportamento não se tornou psicótico. E a dor já não era sentida da mesma maneira.

A organização percebeu isso. Anna já não era mais uma sofredora qualquer. Ela poderia servir ao verdadeiro propósito. Foi o que pensou Mademoiselle, creio eu. Anna foi então levada a uma outra máquina. O sofrimento iria acabar, disso Anna era avisada. Ela havia chegado ao estágio final daquele calvário. Um cirurgião então retirou toda sua pele, deixando todo o seu corpo apenas em carne viva, deixando apenas seu rosto sob a pele. Mesmo assim, o horror já havia sido completamente substituído por uma espécie de drama. Mas Anna, mesmo quase imolada, não estava morta. 

Seus olhos brilhavam. Seu estado quase transcendente chamou a atenção de todos ali. Tanto Mademoiselle quanto outros idosos foram convocados a comparecer naquele local. Mademoiselle chega a tempo de falar com Anna, que, em seu estado de transcendência, conseguiu comunicar-se com a idosa a fim de lhe falar sobre o que estava vendo. Era o outro mundo, o que há depois da morte.

O assistente de Mademoiselle, Etienne, começa a falar para todos os presentes sobre o resultado da martirização de Anna. Mencionou que, em décadas de experimentos, apenas quatro mulheres haviam sido martirizadas com sucesso, mas todas morreram sem compartilhar o que tinham visto. Anna Assaoui foi a primeira. 

Etienne então perguntou à Mademoiselle se o que Anna vira era claro e preciso. Ela confirmou e logo depois perguntou a ele se ele poderia imaginar o que vinha após a morte. Ao passo que ele disse "não", Mademoiselle disse "continue imaginando" e se matou, finalizando assim a história do longa.

Mas este final dramático, junto com a mensagem de Mademoiselle enquanto conversava com Anna antes de a mesma ser martirizada, nos deixa clara uma coisa: Martyrs não é um mero filme de horror gratuito e tampouco uma história que meramente retrata a injustiça da crueldade que extraiu o sofrimento de uma jovem inocente.

Martyrs é um filme profundo, cruel com o expectador, mas ao mesmo tempo o leva ao limite para treinar sua resiliência. Ele mostra, de uma maneira brutal, o quanto a sociedade é fraca. O quanto as pessoas são fracas. Num mundo povoado por maricas, por vítimas, pessoas que praticamente não suportam suas sinas, são parcela rara da humanidade aqueles que atravessam dificuldades com resiliência. E são poucos os seres sobre a terra que conseguem transcender devido à suplantação das dificuldades, os que se elevam em relação ao que eram antes de enfrentarem verdadeiros calvários. Foi o caso de Anna Assaoui. Não é à toa que apenas cinco mulheres, contando com Anna, foram martirizadas. Não é à toa que só Anna viveu o suficiente para ver e partilhar o que via.

As sinas, porém, não precisam ser similares às do filme. Anna passou pelo pior teste de resiliência que poderia passar: o do sofrimento extremo. No nosso dia-a-dia, essa superação pode ser em relação a limites que queiramos superar em nós mesmos, sem necessariamente comportar dor similar. Vejam meu caso. Desenho desde que me entendo por gente. E quando era pequeno, não imaginava que iria desenhar tão bem quanto desenho hoje. Foi uma forma de transcender-me sobre mim mesmo. E há outras formas, que vocês devem descobrir por vocês mesmos também.

A mensagem do filme se camufla sob o horror. E compreendê-la é, por si só, uma forma de transcender nossos limites, a forma como vemos a dor e como conseguimos nos manter atentos ao que acontece sob seus efeitos, ora alucinantes, ora destrutivos. 

Permanece a questão antes de toda essa longa reflexão: 

Quanto horror somos capazes de suportar?

Um comentário:

  1. Já conhecia esse filme de outras histórias e sempre mantive minha curiosidade sobre ele, mas agora sei que tenho que vê-lo. Vamos deixar o medo de lado.

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