quinta-feira, 3 de novembro de 2022

"O HOMEM INVISÍVEL" (2020) - RESENHA CRÍTICA




A linguagem do cinema é extremamente multifacetada. É uma forma de arte capaz de despertar no público as mais diversas sensações, atribuir significados através da mera combinação de imagens e sons e literalmente produzir alegria, serenidade, angústia, tristeza... e medo. O medo é um dos sentimentos mais poderosos que um longa pode causar, pois ele literalmente dribla a limitação estabelecida pela tela (a tal da quarta parede) e atinge diretamente o espectador. É muito fácil sentir coisas como felicidade, tranquilidade e humor enquanto se vê um filme. Mas quando se está protegido pela tela, apenas um projeto muito bom e que sabe o que está fazendo pode fazer você sentir o MEDO propriamente dito.

Há muitas formas de um terror fazer isso. Seja apelando a medos alegóricos (figuras naturalmente bizarras, como palhaços, ou os serial killers dos "slashers") ou a assombrações e coisas relativas ao espiritual, não há muito mistério, não à toa esse tipo de projeto é extremamente popular no terror, sendo inclusive temas muito recorrentes nas produções do gênero. Mas o melhor tipo, a meu juízo, é aquele tipo de terror que busca explorar as ansiedades mais reais e palpáveis, como o fato de não conhecermos de verdade as pessoas de quem nos aproximamos, ou literalmente lidar com um stalker (perseguidor). É por isso, por exemplo, que obras como "Psicose" e "Halloween - A Noite do Terror", funcionam tão bem até os dias de hoje, mesmo tendo sobre eles a implacável ação do tempo. Acredito que não haja terror mais eficiente do que aquele que reproduz, em alguma escala, seus medos mais íntimos, que toca em suas feridas mais abertas e se aproveita da sua maior vulnerabilidade. 

E é neste quadro que se localiza "O Homem Invisível", que comentarei a seguir. Lançado em 2020, é uma adaptação do livro homônimo publicado em 1897 pelo autor H.G. Wells, que por sua vez é um clássico da ficção científica. do qual também se originou o clássico filme de 1933. O filme é escrito e dirigido por Leigh Whannell (roteirista de "Jogos Mortais") e estrela Elisabeth Moss, Aldis Hodge, Oliver Jackson-Cohen e Storm Reid. Na trama, Olsen vive Cecilia, uma mulher que foge de seu marido, Adrian (Jackson-Cohen), um cientista pioneiro em ótica, após viver um relacionamento profundamente abusivo nas mãos dele. Logo depois, Adrian supostamente morre, mas coisas estranhas começam a acontecer com Cecília e ela passa a duvidar da morte de Adrian, suspeitar que de alguma forma ele tenha ficado invisível e a questionar sua própria sanidade.

A direção de Whannell é muito eficiente na construção da tensão desde o começo, na casa mostrando como a protagonista se encontra isolada e sempre alerta, indicando que mesmo na aparente quietude, ela está em perigo. O primeiro ato é muito eficaz em estabelecer a situação na qual o filme se desenvolve, com planos longos e bem abertos que deixam claro que o ambiente onde ela vive é extremamente opressor. Há também um contraste entre essas cenas e alguns momentos mais leves entre Cecília, sua irmã e seus amigos, que serve para gerar identificação do público com esses personagens (são muito bons, exceção apenas para a irmã). O ritmo permanece cadenciado até o segundo ato, o que é ótimo, pois vemos uma quantidade cada vez mais bizarra de coisas acontecendo e sentindo a angústia da protagonista, que vai cada vez mais sendo boicotada, privada de sua vida social e literalmente sendo tida como louca (o famoso gaslighting). Tudo isso é muito crível e você se coloca no lugar de Cecília sem muita dificuldade. 

O roteiro é extremamente eficaz em explorar toda a verossimilhança da situação vivida pela protagonista e fundi-la isso com o aspecto da ficção científica. E traz um importante comentário social:  isolamento experimentado pela personagem de Moss não é nada muito diferente do isolamento que muitas pessoas vítimas de relacionamentos tóxicos, em sua maioria mulheres, viveram ou vivem na vida real. A mistura produz um clima de tensão, angústia e paranoia crescentes. O filme, porém, não é perfeito neste aspecto: há uma quebra de ritmo muito evidente do segundo para o terceiro ato, no qual o projeto abandona o ótimo clima de tensão e suspense estabelecidos para dar lugar a uma ação mais direta, com a protagonista finalmente tomando uma atitude sobre tudo o que está vivendo. Eu não exatamente gosto disso, mas acho que funciona para o grande esquema das coisas aqui. 

Gosto, em algum nível, da ironia do filme em mostrar a personagem de Moss tendo que falar coisas como "ele está aqui conosco" ou "foi ele, não eu" em situações que desafiam a lógica e o ceticismo dos outros personagens, numa vibe parecida com a do Andy Barclay em "Brinquedo Assassino". Há certas semelhanças entre os dois projetos, não há como não notar.

Mas nada disso seria possível sem a presença inigualável da atriz Elisabeth Moss. Não, sério, não seria absurdo se todo o trecho sobre atuação desta resenha fosse só sobre ela. Todas as circunstâncias aqui inscritas perpassam sua atuação, que é nada menos do que brilhante. Ela consegue carregar consigo muita verdade e verossimilhança em relação a tudo o que sua personagem passa, todo o pânico e a agorafobia que ela sente, de maneira brilhante. Como o vilão passa o tempo quase todo na invisibilidade, ela precisa fazer muita atuação corporal sozinha, e dá um verdadeiro show. É importante também ressaltar que sua personagem não é o típico estereótipo do protagonista burro de filme de terror: Cecília é esperta, descobre as coisas que precisa descobrir numa progressão lógica e verossímil, o que é sempre muito bem-vindo, e sabe o que precisa fazer para sobreviver aos perigos mais imediatos quando estes se apresentam. No elenco de apoio, Aldis Hodge está muito bem e Oliver Jackson-Cohen nem faz tanta coisa assim durante o filme, mas cumpre um papel importante de maneira bem eficaz no ato final.

Tenho também que dar um destaque ENORME para o design de som e a trilha sonora de Benjamin Wallfisch. O som do filme nas cenas de tensão faz até mesmo cada passo dado pelos personagens parecer perigoso, e dadas as características especiais do vilão, cada mínimo barulho pode ser indicativo de um perigo à espreita. Diante deste quadro, o uso inteligente e minimalista da trilha sonora se faz necessário, e de fato isso é feito. Não há aqui a típica boba pontuação de jumpscares a partir dos acordes de trilha: isto dá lugar ao silêncio quase absoluto, porém muito mais efetivo, quase torturante. Nas cenas mais de ação, há o uso de uma trilha meio bizarra, com notas estridentes, e um pouco mais agitada, porém apropriada.

No fim, "O Homem Invisível" é um ótimo terror de ficção científica com um comentário social muito pertinente sobre relacionamentos abusivos, que me conquistou pela direção eficiente e pelo trabalho maravilhoso da atriz principal. Brilhante trabalho de atualização do clássico que lhe deu origem.

Nota: 9,0


segunda-feira, 31 de outubro de 2022

X-MEN 3: O CONFRONTO FINAL (2006) - RESENHA CRÍTICA


Escrevo esta resenha crítica em meio ao dia mais importante da história política recente do país e eufórico após uma vitória política para mim e alguns de meus chegados, o que é no mínimo inusitado. Comemorar enquanto escreve um texto sobre um filme? Bom, cada um tem sua forma de aproveitar um momento e esse talvez seja o meu.

Isso, obviamente, não salvará "X-Men 3" de levar uma boa surra, pois vou adiantar logo, este filme é ruim pra cacete e eu me envergonho de um dia ter dito para alguém que gostava dele. Sim, eu gostava muito pelos idos de 2014. Mas nos últimos anos eu acabei desenvolvendo um olhar um pouquinho mais sofisticado para cinema, capaz de entender textos com mais nuances narrativas.

Mas antes de começar a falar mal desse filme, acho que é justo compartilhar aqui a minha opinião num geral sobre os X-Men como grupo de heróis e a franquia X-Men no cinema até antes desse projeto ser lançado. Eu goto bastante desta super-equipe e de como ela sempre teve um papel de vanguarda no que diz respeito a discussões políticas neste ambiente de cultura pop e quadrinhos, e eu gosto muito mais e me identifico com eles do que, por exemplo, os Vingadores, que se tornaram muito famosos nos últimos dez anos. Não à toa, depois do Homem-Aranha, o meu personagem favorito da Marvel Comics é o Magneto, que é um excelente personagem e que muitas vezes transcende o papel vilanesco atribuído a ele, tanto nos gibis quanto nos filmes.

"X-Men" foi um baita de um filme, que praticamente inaugurou o grande esquema das coisas no que diz respeito a blockbusters de super-heróis, reunindo um elenco de altíssimo peso e consagrando Hugh Jackman como um dos grandes astros do cinema blockbuster desde então. OK, tecnicamente falando, "Blade" (1998) foi o longa que oficialmente começou a parada toda, mas não há como ignorar que o diretor Bryan Singer estabeleceu um parâmetro para o cinema de franquia de super-heróis, que por sua vez foi posteriormente lapidado por gente Kevin Feige no Universo Cinematográfico da Marvel. Feige, aliás, é produtor de praticamente todos os filmes com personagens Marvel desde "Blade". X-Men 2, por sua vez, é uma continuação sólida que não apenas dá continuidade ao primeiro de maneira satisfatória, mas também expande a discussão sobre tolerância e respeito às diferenças de maneiras até bem pertinentes. E é uma boa adaptação do quadrinho "Deus ama, o Homem mata", de Chris Claremont. E posso dizer que o visual do Magneto nessa trilogia é o meu favorito de todas as representações do personagem em qualquer mídia: elegante, poderoso, um verdadeiro lorde nas ações e nos trejeitos do ator, Ian McKellen, que transborda carisma.

Já o filme sobre o qual falaremos... bem, ele tem uma produção complicada. O diretor Bryan Singer se ausentou do projeto para dirigir "Superman - O Retorno" e deixou a batata assando nas mãos de Brett Ratner, um diretor bem questionável, mas que fez um trabalho até decente em filmes como "Red Dragon" de 2002 e a franquia "A Hora do Rush" (até o segundo filme), mas também produziu a BOMBA chamada "Dragon Ball Evolution". E bem, importante mencionar que depois ele foi acusado de assédio sexual por pelo menos duas atrizes. Portanto, é importante frisar que estamos aqui falando de um vagabundo oportunista e criminoso sexual.

A trama é a seguinte: Magneto está à solta após os eventos de X-Men 2 e continua empenhado em criar um exército de mutantes para dar um sacode na humanidade. O governo dos EUA encontra um garoto capaz de anular e suprimir os poderes dos mutantes e o utiliza para criar uma cura, contra a qual Magneto e seu secto busca se opor. Jean Grey reaparece como a entidade da Força Fênix e se torna uma ameaça para mutantes e humanos, e Wolverine enfrenta um dilema emocional entre o amor que sente por Jean e o provável desfecho no qual ela talvez deva morrer. O cientista responsável pela cura é pai de um mutante que acaba se tornando o Anjo (personagem da equipe original dos X-Men de 1963) e os dois possuem uma rusga mal resolvida, na qual o pai quer suprimir seus poderes, mas o filho quer viver sua própria vida abraçando esses poderes (uma alusão nada sutil a gays saindo do armário, o que não é nada ruim no mérito, mas é bem descompensado na forma). 

Logo de cara, importante notar que o filme é ABARROTADO de tramas e subtramas. Trama demais é sintoma de quê? Isso mesmo, roteiro mal escrito. Muita coisa acontece a todo momento e o roteiro corre demais durante todo o tempo da projeção, eliminando completamente a amplitude dramática. Algumas das tramas são praticamente desligadas do grande esquema do roteiro e não fariam falta alguma se fossem retiradas, é o caso do arco do Anjo e o da Vampira, o que é profundamente lamentável. A direção de Ratner é incompetente e não consegue atribuir nenhuma amplitude dramática a nenhuma das tramas que tenta desenvolver. O material desta sequência já não é muito bom e o diretor não ajuda, desperdiçando MUITO o potencial do elenco que tinha à mão, quase como se ele estivesse fazendo o filme nas coxas e sem muita paciência para dirigir atores. A prova disso é que temos personagem descaracterizado, peronagem subaproveitado, personagem jogado para debaixo do tapete sem mais nem menos... Porra, cadê o Noturno? Ele foi uma das melhores adições à franquia em X-Men 2, com cenas de ação excelentes e um arco dramático convincente... por quê? E aí colocaram no lugar um Múltiplo (Eric Dane) que não fede nem cheira e um cosplay mal-feito do Fanático (Vinnie Jones). O "confronto final" que dá nome ao título do filme é completamente insosso e sem emoção alguma.

As atuações são o que tornam esse projeto suportável de assistir até o fim. O elenco faz o que pode com o que tem em mãos. Hugh Jackman e Halle Berry estão bem, James Marsden está OK e Famke Jamsen faz o que pode com o péssimo script de Jean Grey/Fênix que ela recebe para atuar. E claro, o carisma e personalidade de Patrick Stewart (Professor Charles Xavier) e Ian McKellen (Erik Lehnsherr/Magneto), que são dois atores tão fodásticos que conseguem ter uma baita presença. Embora o personagem de Magneto seja completamente descaracterizado nesta sequência em uma cena tão ruim que me deu câncer, onde ele deixa uma aliada (Mística) para trás sem mais nem menos, LITERALMENTE após ela salvar sua vida, apenas porque ela perdeu os poderes mutantes, o que é um completo desserviço ao personagem de McKellen. É simplesmente terrível de tão ruim, e a Mística some completamente do filme, aparecendo depois praticamente apenas como uma nota de rodapé muito safada que o filme usa só para dizer que não a esqueceu. Uma boa adição aqui é a personagem da Kitty Pride (da ótima Ellen Page, que havia feito MeninaMá.com e que hoje é um homem transgênero, tendo mudado o nome para Elliot), que faz um bom papel como a Lince Negra.

Aliás, vale destacar um período específico para a Vampira: é inacreditável o potencial desperdiçado da personagem de Anna Paquin durante toda a franquia, que é uma crítica recorrente entre os fãs e a própria atriz sempre se sentiu incomodada. A personagem nunca teve uma agência muito preponderante nos filmes de Singer, mas parece que Brett Ratner odeia de verdade essa personagem. Ela tem todo um dilema pessoal com a questão da cura mutante e o filme pinta isso como algo relevante, mas ela DESAPARECE do filme no terceiro ato e aparece depois de tudo resolvido, apenas como nota de rodapé, ao mesmo estilo da Mística. Eu lamento profundamente que esse tenha sido praticamente a última vez de Vampira no cinema. Paquin fez uma participação em X-Men: Dias de um Futuro Esquecido, que foi cortada da versão que foi para o cinema).

Não tenho mais nada pra dizer, esse filme é uma zona de tão ruim e só não é o pior da franquia original porque "X-Men Origens: Wolverine" existe. 

Nota: 3,0

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Hidden Figures (2016) - RESENHA CRÍTICA

Há filmes que são necessários para que lembremos que a barbárie está mais próxima do que talvez imaginemos ou pensemos, seja através do tempo, do espaço ou até dos dois simultaneamente. Afinal, não é incomum ouvirmos bobagens do tipo "o antirracismo hoje em dia é inútil, os pretos já conquistaram seu espaço". Esta afirmação é completamente estapafúrdia e encontra contestação sem que se precise fazer muito esforço. 

"Hidden Figures", filme de 2016 que comentaremos hoje, foi batizado em terras tupiniquins como "Estrelas Além do Tempo". Péssimo nome, preferi utilizar o original, que traduziria como "Figuras Escondidas". O nome oficial brasileiro da obra é, na pior das hipóteses, incompreensível de tão genérico. Zapear pelo streaming e ver esse nome não te traz nenhuma curiosidade especial a menos que você já tenha ouvido falar sobre o filme (foi o meu caso). O projeto é dirigido por Theodore Melfi e este é provavelmente seu projeto mais bem-sucedido até hoje, com indicações ao Oscar para melhor filme, melhor roteiro adaptado e melhor atriz coadjuvante para a já oscarizada Octavia Spencer. 

O filme acompanha a história de três mulheres que trabalham na NASA durante a corrida armamentista da Guerra Fria entre EUA e União Soviética: a matemática Katherine Goble Johnson (Taraji P. Henson), a Dorothy Vaughan (Octavia Spencer) e Mary Jackson (Janelle Monáe), bem como as dificuldades cotidianas que as três encontram para se encaixar em um ambiente completamente opressivo para pessoas "de cor" (sic). E bom, ao contrário do seu título chinfrim, o filme funciona muito bem em trazer toda a aura da sociedade estadunidense do começo dos anos 1960: ainda segregada racialmente por força de lei em vários estados do país. Está tudo muito bem à mostra. O roteiro do filme acerta ao fazer isso de maneira bem escrachada, mas com boas doses de humor ácido, onde se você ri, é de nervosismo e constrangimento. Gosto também que os roteiristas não apelaram para a fórmula fácil de definir as personagens apenas pela opressão: cada uma tem uma personalidade distinta e bem definida.


A cena inicial em que as protagonistas são abordadas por um policial é tensa na medida em que você geralmente sabe o que acontece quando a polícia aborda pessoas pretas, mas é seguida de uma aliviante quebra de expectativa. Daí em diante, o filme não economiza em jogar na nossa cara como essas personagens são oprimidas e o quanto precisam lutar até mesmo nas mais "simples" tarefas cotidianas. Para além das já conhecidas práticas segregadas de utilizar transportes coletivos ou ambientes públicos de modo geral, precisam andar mais de um canto a outro para fazer coisas como ir ao banheiro, não podem tomar café no mesmo bule que os brancos, precisam trabalhar às cegas com dados parciais que se desatualizam rapidamente e não podem nem assinar relatórios. Isso quando não são confundidas com zeladoras/faxineiras. A composição das cenas faz sempre questão de mostrar o isolamento dessas personagens em um ambiente que a todo tempo faz questão de deixar claro que elas não são bem-vindas, seja no enquadramento de câmera, na disposição dos personagens em certas cenas e até nas cores das roupas. Trabalho primoroso de direção de atores, fotografia e figurino. As cenas em que vemos a protagonista principal correr quase 1km para ir ao banheiro porque não havia banheiros disponíveis para ela no prédio onde trabalhava são cortantes e culminam naquela que provavelmente é a melhor cena do filme.

Tudo isso é viabilizado por um poderoso elenco. Taraji P. Henson emociona demais como Katherine Goble, mostrando uma performance sensível a todas as opressões cortantes sofridas pela personagem, mas com muita força de vontade para fazer aquilo que acha certo até estourar suas emoções. Octavia Spencer é brilhante ao mostrar em Dorothy Vaughan uma personagem preta em posição de poder, mas ainda muito tolhida em relação a seus colegas brancos em posições similares e que faz questão de deixar isso muito claro. Janelle Monáe é muito eficaz como Mary Jackson, pois consegue imprimir toda a gana e vontade de sua personagem em aprender e se tornar uma cientista mais capaz, mas dando de cara com o sistema educacional bastante segregado e um sistema judicial ainda cambaleante em tolher tal segregação (lembremos que as leis federais dos EUA geralmente possuem jurisdição fragmentada nos estados até os dias de hoje). 

O elenco de apoio é também especial e com alguns nomes de peso: Kevin Costner constrói um chefe durão, porém sensível em algum nível às questões raciais e que se mostra um bom mentor para Katherine. Kirsten Dunst e Jim Parsons são muito eficazes como figuras de poder autoritárias e repletas de preconceitos raciais (embora seja difícil não ver a Mary Jane em Dunst e Parsons esteja só reprisando em alguns níveis o Sheldon Cooper de "The Big Bang Theory"), enquanto Mahershala Ali interpreta Jim Johnson como um bom personagem em desconstrução ideológica enquanto serve como par romântico para a protagonista principal. Gosto demais de Aldis Hodge, a composição de seu Levi Jackson, como um personagem que anseia lutar num ativismo direto ao mesmo tempo em que precisa mudar suas próprias concepções ideológicas em relação ao trabalho da esposa.

De resto, acho que preciso comentar a hipocrisia da frase principal que geralmente é entendida deste filme, que é "Nunca deixe de lutar". Convido a todas e todos vocês, meus (poucos) leitores, a uma reflexão crítica. Será que este lema deveria realmente ser o objetivo da população preta? Ora, o objetivo principal deveria ser a criação de um mundo onde os preconceitos de classe/raciais não mais teriam sequer condições de existir, no qual a necessidade de lutar se tornaria, portanto, obsoleta. Ora, a sociedade que até aquele momento melhor representava tais perspectivas de superação do racismo, embora não desprovida de contradições, era justamente a União Soviética e o ideal comunista... que os estadunidenses capitalistas e a NASA - capitalistas - combatiam. O "melhor" comentário que o filme tem a fazer sobre isso é chamar os soviéticos de "canalhas" sem um pingo de ironia sequer pela voz do personagem Al Harrison, de Kevin Costner. 

O preconceito racial prosperou, prospera e prosperará enquanto formos subjugados por um regime baseado na expropriação e na exploração do homem pelo homem.

Ainda assim, "Hidden Figures" é um ótimo filme, com comentário social sólido e importante sobre o racismo de um modo geral e que ganha força pelo seu sólido roteiro, elenco impecável e direção precisa, mas também pelo fato de ser um filme que dificilmente deixará de ser atual a curto prazo.

Nota: 9,0

domingo, 21 de agosto de 2022

Cruella (2021) - RESENHA CRÍTICA


Desde criança, sempre gostei de desenhos da Disney, embora nunca fossem os meus favoritos. Tom & Jerry sempre foi meu carro chefe, seguido do Pica-Pau e dos desenhos da Looney Tunes, especialmente Papa Léguas & Coyote. Dos clássicos Disney, "O Rei Leão" é de longe o meu favorito de sempre, com uma história belíssima cheia de alegorias a maturidade e sobre como devemos assumir as responsabilidades que se apresentam. Nunca vi muito, porém, o desenho "101 Dálmatas" de 1997, do qual se originou o filme que comentarei nesse texto se apresenta, porém vi alguns episódios e de fato era muito divertido ver as aventuras dos cães pintados contra a malvada Cruella de Vil.

O filme do qual falaremos, porém, ensaia jogar um olhar bem mais profundo e interessante sobre esta personagem. Lançado em 2021 e dirigido por Craig Gillespie (também dirigiu o ótimo "Eu, Tonya"), "Cruella" conta a história de Estella (Emma Stone), uma garota de cabelo peculiar e muitos sonhos, mas que come o pão que o diabo amassou no processo de realizá-los e que descobrirá os dissabores do mundo da moda da pior forma, e segredos terríveis sobre si mesma, na qual pouco a pouco se tornará a clássica vilã. A Disney tem acertado em cheio nas repaginações que tem feito de seus vilões, trazendo-os como figuras trágicas e complexas no lugar das abordagens malvadas típicas. E aqui não é diferente. 

A natureza do roteiro de "Cruella" é relativamente simples: trata-se de uma narrativa shakesperiana de tragédia e sucessão hereditária de poder, o que não deixa de ter seu aspecto de clichê. Mas o filme é escrito de uma forma que o espectador desavisado acaba não percebendo até que a revelação principal aconteça, e ela é impactante. Um jogo de gato e rato no qual a protagonista vai cada vez mais submetendo a antagonista Baronesa (Emma Thompson) a sucessivos constrangimentos e deixando claro que o reinado da rival no mundo da moda está prestes a colapsar. 

Falando em moda, é difícil assistir a este projeto e não ficar encantado/deslumbrado com a parte de figurino. O filme é quase inteiro um desfile de moda, pois os momentos mais impactantes quase todos giram em torno de figurinos espalhafatosos belíssimos e apaixonantes, criados pela figurinista britânica Jenny Beavan. A parte visual do filme é também muito boa, com a fotografia retratando uma Londres pitoresca e em um processo de transformação urbana quase tão marcado quanto os maravilhosos figurinos de Beavan, com certo contraste entre a arquitetura clássica e a arquitetura mais contemporânea da segunda metade do século XX.

O filme explora de maneira muito contundente a relação opressiva entre a Baronesa e suas designers do ateliê de moda, na qual ela extrai e expropria completamente os resultados do árduo trabalho dos designers, os tratando sempre como ativos dispensáveis, o que vai deixando o espectador com cada vez mais abuso dela e consequentemente mais simpáticos à ação sabotadora de Estella/Cruella. Há toda uma construção de perfil narcisista e capitalista selvagem da personagem de Thompson que funciona muito bem tanto para efeitos dramáticos inerentes ao próprio filme, quanto para leituras críticas externas a ele. Afinal, se você trabalhou no setor de criação de uma empresa, sabe muito bem que o que você cria no âmbito do trabalho não é seu, e sim pertence a quem paga seu salário, que provavelmente usará sua criação para gerar valor e mais valor para ele próprio.

Gosto que este filme consegue reproduzir uma atmosfera cômica similar às animações sem necessariamente tentar apelar para aspectos que fatalmente fariam o projeto parecer muito caricato, como vários live-actions dos anos 1990 (tipo "O Máskara" ou "Uma Cilada para Roger Rabbit") fizeram ao incluir efeitos especiais e sonoros de desenhos. Em vez disso, aposta-se muito na comédia ácida e na direção dos atores para extrair algo leve e ao mesmo tempo emocional e sensível. Contudo, a direção às vezes parece passar por uma confusão tonal, ao passo que parece não ter tanta clareza naquilo que quer passar. Trama adulta? Comédia? Caricatura? O filme transita por essas três searas, nem sempre da melhor maneira.

Por falar em atores, o elenco dá um show. As já citadas Emma Stone e Emma Thompson são a dupla principal e estão irretocáveis. Stone consegue fazer sua Cruella ser muito identificável em quase todos os aspectos, desde a moça desajeitada e socialmente desfavorecida até a predadora amante da moda que ela se torna, mas sem tentar justificar suas atitudes mais vilanescas. Já Thompson atribui à Baronesa um efetivo poderoso ar de superioridade, com todos os já citados tiques de narcisismo e de empresária bilionária (bilionário tem que se foder, lembremos) que realmente funcionam muito bem. O elenco de apoio também funciona muito bem, Joel Fry e Paul Walter Hauser fazem a icônica dupla Horace e Jasper, e conseguem atribuir a esses dois personagens toda a aura de capangas atrapalhados divertidos que tinham na animação, mas também acrescenta uma personalidade questionadora aos dois, ao passo em que presenciam as crescentes contradições da protagonista. Temos também as boas presenças de John McCrea, Kirby Howell-Baptiste e do sempre confiável Mark Strong (de "Sherlock Holmes" e "Shazam").

Ao final da exibição, "Cruella" é um filme divertidíssimo e envolvente em vários aspectos, que se por um lado é por vezes confuso no tom desejado (às vezes muito adulto para ser Disney ou muito Disney para ser adulto e os dois tons nem sempre conversam muito bem) e com certeza clichê em alguns momentos (a narrativa é derivativa, embora se venda como original) por outro lado como pontos altos o visual estonteante do figurino e a atuação da dupla principal. Vale a pena? Com certeza.

Nota: 8,5

sexta-feira, 29 de julho de 2022

O canto do cisne de Vettel

Há cerca de três anos, escrevi um texto para este blog, chamado "Sobre o possível canto do cisne de Vettel", onde especulava sobre uma possível aposentadoria de Sebastian Vettel da Fórmula 1 na época, no já distante ano de 2019.

Aquele texto era melancólico, em uma época melancólica para fãs de Vettel, eu incluso.

Este, ao contrário, será para CELEBRAR Vettel, como um dos melhores seres humanos que já passaram por este esporte que tanto nos maltrata, mas que tanto amamos.

Sua aposentadoria não exatamente me pegou de surpresa. Mas com certeza me deixou um pouco melancólico na hora. 

Sou daqueles que desejavam Vettel de volta a uma briga por título, pois sei que ele se daria muito, muito bem.

O desapego do piloto às redes sociais era algo louvável. Um cara à moda antiga, de fato. Daí ele criou um Instagram, só para anunciar a aposentadoria, para evitar boatos, disse-me-disse, cochichos.

Papo reto. Dele para seus fãs e público geral. Sem mediação de imprensa.

Desconheço piloto nesse grid com maior respeito pelos fãs. Talvez o único que chegue perto hoje em dia é Hamilton.

Não é mistério para ninguém que considero Vettel meu piloto favorito dos que competem atualmente. E um dos meus três favoritos de sempre, junto de Hamilton e Michael Schumacher.

Hoje em dia, não vive mais seu auge e com certeza já teve uma fase bem mais próspera no automobilismo, por uma série de fatores que nem cabe elencar neste momento.

Acompanhei a carreira de Vettel na Fórmula 1 com entusiasmo, embora inicialmente eu tenha olhado meio torto para o alemão. 

Coisa de adolescente, eu tinha lá meus 14-15 anos quando Vettel começou de fato a disputar títulos na Fórmula 1, e sinceramente tinha uma certa mania de virar casaca. Coisa de adolescente dodói.

Mas uma vez Vettel campeão, nasceu em mim uma admiração e um gosto por Seb que não pararam desde então. 2010 foi um divisor de águas para mim enquanto torcedor por uma série de fatores.

Era uma satisfação imensa ver cada vitória, cada pole, cada momento grandioso em que Vettel reescrevia a história da Fórmula 1, amealhando quase todos os recordes de precocidade possíveis. 

Muitos dos quais foram mantidos até hoje, inclusive.

O domínio se sucedeu, e Vettel foi conquistando cada vez mais vitórias e enfileirando títulos - foram quatro, no total.

52 vitórias, 56 poles, 122 pódios. Fechará a carreira com 300 GPs disputados, número fechado.

Terceiro maior vencedor da história.

Quarta maior marca de poles.

Maior quantidade de vitórias em sequência da história da Fórmula 1 - nove. 

Divide com Alain Prost a marca de quatro títulos, ficando atrás apenas de Fangio, Hamilton e Schumacher.

Enfim, uma porrada de feitos fodas pra caralho que eu deixo para vocês pesquisarem o resto na Wikipedia porque ninguém veio ler essa caceta pra ficar lendo estatística.

Afirmava na época, afirmo agora:

Sebastian Vettel foi, durante seu auge, o melhor piloto da Fórmula 1. 

Sem meios termos, sem beabá de "Ah, tal piloto era melhor mas não tinha carro" ou qualquer merda dessas.

Era o melhor. Ponto. 

Hamilton, Alonso, Raikkonen etc, 

TODOS comiam poeira. 

TODOS.

Não sei se alguém lembrará, mas teve um dia histórico nesses anos de domínio do alemão.

GP de Singapura 2013, sessão classificatória.

No Q3, Vettel foi o primeiro a fazer uma volta lançada, faltando mais de cinco minutos para acabar o tempo da sessão.

Voltou para os boxes. Por lá esperou o resultado. Ninguém superou o tempo. Confirmou a pole-position nos boxes, já fora do carro.

Não me lembro de nenhum piloto na era atual da F1 ter feito isso. 

Nem Hamilton na toda-poderosa Mercedes nos anos seguintes fez algo remotamente parecido.

"Ah mas o carro-" DANE-SE.

Mark Webber não fazia o que Vettel fazia com os carros projetados por Adrian Newey. Quem se atreve a dizer que Mark Webber era mau piloto?

Limpa a boca antes de falar "ah mas o carro". O cara ganhou de Toro Rosso sob dilúvio. Pole e vitória. Com autoridade. Estilo Senna no GP de Portugal de 1985. 

Hoje, Vettel vive o crepúsculo de sua laureada carreira. Muito amado por alguns, especialmente por sua apaixonada torcida. 

Odiado por outros tantos, fomentados pela falsa ideia de que Seb não era tão bom assim e também por todo o mar reacionário que é a Fórmula 1 e seus fãs de um modo geral.

Pois hoje, aos 35 anos e já muito mais maduro do que outrora, o alemão entende seu lugar no mundo. 

O lugar de alguém que, muito mais do que um piloto de corridas, é um ser humano imbuído da nobre motivação de tentar tornar o mundo um lugar melhor.

Do ponto de vista de um comunista (meu caso), ele pode até não entender de fato as reais causas dos problemas climáticos, bem como os problemas da população pobre e das minorias, pois sua atuação se dá de maneira ainda muito incipiente, considerando o que realmente seria necessário para resolver tais problemas (mas até aí, nem Lewis Hamilton, outro contumaz defensor de causas sociais, entende de fato, então tá tudo certo).

Mas tenho certeza de que ele se esforça ao máximo para, da sua posição, ser uma pessoa melhor e tornar o mundo um pouco melhor para outras pessoas. 

Tomou dianteira junto com Hamilton nos protestos de antirracismo de 2020. Hoje é um ferrenho defensor da causa ambiental.

Vettel é um brilhante piloto, e um ser humano melhor ainda. Isso ninguém tira dele. 

Ou de nós, que acompanhamos sua carreira com tanto carinho. por todos esses anos.

Obrigado, Sebastian Vettel. Por tudo.