sábado, 10 de janeiro de 2015

Sobre reparações


Hoje, tive vontade de fazer uma crônica sobre o texto "Senna não é Pelé (ainda bem!)", escrito pelo professor de línguas Marcel Pilatti e publicado no Jornal Opção. Link aqui para quem quiser lê-lo. E como este texto é uma crítica ao artigo de Ademir Luiz, colocarei também link para o texto do historiador, aqui

Eu concordo com muitas coisas desse texto e posso dizer que ele reiterou algumas coisas que eu já pensava, principalmente a respeito da vida pública de Pelé fora dos campos de futebol. O texto objetiva tecer uma crítica a outro artigo, "Senna não é Pelé", de autoria do historiador Ademir Luiz. Mas pessoalmente, não o vejo como uma crítica, mas como um texto complementar, de certa forma.

De fato, Senna é adorado no mundo todo não apenas como personalidade esportiva, mas também como benfeitor. Porém, é errôneo dizer que Ademir atribuiu à Rede Globo ou a Galvão Bueno - até porque a única menção feita à emissora carioca no texto de AL foi numa figura de linguagem envolvendo o Globo Repórter, programa da emissora - a função de criadores de um "suposto" (para o autor do texto) produto de marketing.

Sabemos que houve e há participação da TV, sobretudo a brasileira, na criação e consolidação da imagem do Mito Senna. E o mito não é só impulsionado pela TV, mas também ajudado a se propagar e consequentemente se perpetuar por gerações - ou não. No caso de Senna, o mito de fato se propagou pelo mundo todo e persiste até os dias de hoje, existindo milhares de homenagens e biografias do brasileiro pelo mundo afora.

Porém, como dito antes, não há a redução da imagem de Senna a um mero produto de marketing por Ademir e ele não desconsidera a extensa legião de fãs do brasileiro no exterior. O problema citado pelo historiador em seu texto é que no Brasil a coisa aconteceu de modo muito avassalador, a ponto de serem constantemente vetadas as críticas ao brasileiro por fãs brasileiros de Senna, em geral extremados. 

É compreensível que uma das prováveis consequências seja que o torcedor brasileiro, acostumado às vitórias durante os anos 70, 80 e começo dos 90 e posteriormente órfão de grandes nomes no automobilismo - excetuando-se os brilharecos de Rubens Barrichello e Felipe Massa - tenha ficado impaciente com a participação do país na Fórmula 1. 

Mas não é possível eximir a Rede Globo ou Galvão Bueno da responsabilidade sobre a proporção que isso tomou, pois de fato o narrador - assumidamente um vendedor de emoções - e a emissora assumiram papeis importantes nesse processo. Aliás, é comum ver a Globo dando voz a somente uma perspectiva em várias situações. O exemplo mais recente disso foi quando transformou o filme sobre Tim Maia em um docudrama, invertendo a ordem de várias cenas e possibilitando que a história contada no filme fosse mutilada. Quando se fala de Senna em praticamente qualquer produção encomendada/encabeçada pela emissora, só se permite que se fale bem. E qualquer coisa ruim que Ayrton possa ter feito, para a emissora, sempre tem uma explicação plausível. 

Sabemos também que Senna tinha exclusividade da TV Globo para entrevistas durante os finais de semana de corridas da F1 - vide contrato de Ayrton na Lotus, publicado na internet pelo site Legacy Tobacco Documents Library em julho de 2013. 

E de fato quando aparecia na telinha do plim plim, o brasileiro aparecia exatamente como descreve Pilatti em seu texto: como alguém que se fez mitificar "na conjunção de pelo menos três fatores: 1) o carisma natural, o dom de comunicação e expressão de cada um; 2) a boa imagem pública cultivada [...] obviamente impulsionada pela televisão; 3) os êxitos e as capacidades em suas áreas profissionais."

Mas será que Senna era exatamente como se pinta tanto pelos próprios fãs quanto pela exata conjunção dos tais fatores citados pelo autor? A jornalista Alessandra Alves discorda, em textos publicados aqui e aqui.

"Acompanhei os primeiros anos de Senna como entusiasta de automobilismo. Os últimos, como repórter. Preferia ter ficado só com a primeira parte. Talvez uma das maiores decepções que tive foi conhecer Senna pessoalmente. O herói obstinado e patriota que nos surgia na TV era habitualmente arredio e descortês longe das câmeras. Problema meu, eu diria, pois, apesar de minha mãe certamente achar o contrário, nem todos precisam me tratar bem. Mas comecei a sentir que o problema não era só meu quando passei a ligar alguns pontos.

Senna dava respostas enviesadas e não escondia o mau humor até acender-se a luz da equipe da TV Globo, detentora dos direitos de transmissão da Fórmula 1 desde o paleolítico. Neste instante, como por mágica, sua fisionomia se transformava e então eu reconhecia o herói obstinado e patriota da minha adolescência. Vi a face do mito e logo entendi por que meus colegas mais experientes costumavam ser tão detratores em relação à postura do piloto."

Pilatti finalizou seu artigo reiterando que Ademir teria reduzido Ayrton a um mero produto de marketing e citando a célebre frase, proferida por Abraham Lincoln: “É possível enganar parte do povo, todo tempo; é possível enganar parte do tempo, todo o povo; jamais se enganará todo o povo, todo o tempo.” 

Eu concordo, em termos.

Mas já se passaram mais de 20 anos da morte de Senna e o mito prevalece. O mito.