segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Sobre um livro que você pode ouvir

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Este livro é, talvez, a leitura mais importante do meu 2019.

Falo "meu 2019" porque acho que meu caminho este ano teve umas nuances bem peculiares. Esta segunda parte do ano está se contrapondo ferozmente ao que foi um verdadeiramente pavoroso primeiro semestre. Não me alongarei muito sobre isso, pois são jornadas bem pessoais, das quais meus leitores, de um modo geral, ou já sabem, ou não precisam saber mais do que o necessário.

O fato é que eu sou autista. Diagnosticado aos 17 anos, em 2010, quando meu transtorno era conhecido primariamente como Síndrome de Asperger, essa descoberta me deixou bastante confuso à época, mas foi um primeiro passo importante para que eu entendesse muitas situações incomuns pelas quais eu passava, as quais eu percebia que não eram enfrentadas pela grande maioria das pessoas.

É interessante como a vida nos leva às pessoas certas, ainda que, talvez, do jeito menos convencional. A minha jornada com esse livro teve uma historinha curiosamente meteórica. Eu conheci o livro "Guia Prático para Autistas Adultos" em meados do mês de agosto, através do Instagram do Aspie Sincero, um dos expoentes da comunidade autista brasileira nas redes sociais. Ele produz um conteúdo sensacional. Foi uma época em que estava começando alguns tratamentos, de certa forma, "experimentais" do ponto de vista daquilo que é ou não é "comum" de ocorrer. E também estava começando a descobrir algo muito maior do que eu pensava que era: uma comunidade enorme cheia de gente parecida comigo, com nuances, ideias e até problemas parecidos. Sempre me senti muito sozinho no mundo, mesmo quando rodeado de pessoas. Mas ali eu soube que não estava.

Eu tinha muito receio em comprar coisas em pré-venda, pois meu cérebro autista me levava a ficar raciocinando de forma mirabolante sobre como isso poderia dar problemas das mais diferentes maneiras possíveis. Mas a ideia de ter o livro autografado - este era o único meio de tê-lo - acabou acentuando meu lado colecionador e isso me fez criar coragem para comprar.

E isso me levou a conhecer a Daniela, autora do livro. Poderia ser algo muito inusitado, mas simplesmente não foi. Dani é uma pessoa super aprazível, cheia de disposição para ouvir nossos comentários, dúvidas e até críticas. E, para um pouco de surpresa minha, adora um bom papo. Inteligente, sagaz e divertida, a autora é um doce de pessoa e tudo em sua comunicação e no conteúdo de seu projeto que está à disposição do público nos faz crer na verossimilhança e legitimidade de suas experiências. Conversamos inicialmente por uns trinta minutos, um papo super legal. E tive a "audácia" de lhe pedir um autógrafo especial, o qual mostrarei ao final desse texto.

Daniela me disse que seu livro era ágil e de leitura rápida, feito para ser devorado em uma tarde. E era mesmo. Mas enrolei um pouco a leitura, pois não consigo ficar concentrado em leituras por muito tempo, a menos que esteja realmente determinado a conclui-la. Mas ontem eu consegui entrar de cabeça na narrativa do livro e li nada menos que umas 60 páginas sem grandes interrupções, tamanha  de fato é a agilidade de leitura. E é aqui que começamos a resenha propriamente dita.

A autora cumpre o que promete na proposta do título. Tecnicamente é um projeto que, por vezes, remonta o estilo "auto-ajuda" de maneira bem evidente, mas passa longe de um mero "best-seller-do-autor-palestrante-coach". Aqui temos a própria Daniela, disposta a contar, sem firulas, suas experiências de vida e as influências do funcionamento de seu cérebro TEA (transtorno do espectro autista) em suas ações e reações aos constantes desafios da vida humana, ampliados pela condição do espectro. 

A leitura, como já dito, é ágil e nunca fica maçante, passeando pela melancolia na descrição das experiências, o que é verossímil considerando as condições presentes, que vão desde o próprio cérebro da autora até as conjunturas sócio-econômicas e emocionais pelas quais ela passou, até chegar no guia propriamente dito, onde a melancolia conversa com a mais pura e cirúrgica assertividade, ao propor objetivos e metas para que o leitor - este é um livro desenvolvido primariamente para autistas adultos - trace as suas próprias estratégias para lidar com o mundo como ele é, e não como ele gostaria que fosse.

Traçar as próprias estratégias. Sim, este é o objetivo de Daniela para o leitor. Afinal, durante o texto, a autora nunca dá respostas prontas, fáceis ou rápidas, pois sua narrativa sempre transmite a natureza dramática de suas próprias experiências, a fim de demonstrar, em situações reais e cruas, como de fato um cérebro autista pode funcionar. 

Durante a leitura, minha grande preocupação seria em como a autora trataria a natureza da condição autista. Afinal, em seus vídeos do youtube, Daniela afirma categoricamente várias vezes que o autismo é uma "forma de ver o mundo", o que me causou inicialmente algum incômodo e me fez debater com ela este ponto algumas vezes. Contudo, ao ler o livro, entendi o real significado de suas palavras. O autismo de fato é uma forma de ver e sentir o mundo, só que bem diferente das pessoas neuro-típicas (pessoas que não possuem distúrbios de funcionamento neurológico ou neuro-comportamental). Mas se numa primeira análise - muito mal executada, por sinal - me pareceu que ela estava transmitindo ao público que o autismo seria uma questão de escolha, quando inserida no contexto do livro a frase ganha significados muito mais amplos e verossímeis. 

O autista vê e sente o mundo de maneiras peculiares devido a sua condição neurológica distinta do funcionamento cerebral neurotípico e isso é sempre respeitado no livro. Contudo, Daniela vai além e propõe soluções fora das convencionais cartilhas contidas em livros sobre autismo escritos por cientistas e médicos, baseadas em suas próprias crenças e convicções. Isto é perfeitamente cabível dada a proposta do livro, mas cabe a você, leitor, seguir ou não as propostas. O mais importante é procurar ter objetivos que façam você, autista adulto, ser uma pessoa melhor, seja com os métodos e convicções propostos pela autora ou com os seus próprios métodos pessoais. Isso depende de você. 

Com esta publicação, Daniela ajuda a abrir a cortina de um novo panorama literário para a compreensão do autismo adulto, pois seu texto vai além de um guia para autistas adultos e se torna um convite para pessoas de outros espectros da neurodiversidade e, por que não dizer, para pessoas neurotípicas também. Afinal, é muito mais comum a literatura sobre o autismo infantil, como se ele deixasse de existir na adolescência e na fase adulta. Como se não mais fossemos precisados de compreensão e ajuda e fossemos simplesmente jogados ao léu da hostilidade social como se já tivéssemos obrigação de atender a todas as expectativas... e a verdade é que nós, principalmente os autistas leves e moderados, acabamos tendo realmente de atendê-las, muitos de nós sem as devidas estratégias para tanto. Esta publicação é importantíssima para abrir os olhos da sociedade sobre o autismo adulto. Sobre os autistas que estão se descobrindo e sendo descobertos. Sobre como existimos e procuramos maneiras de sobreviver, mesmo num mundo hostil e confuso para nós. 

Uma leitura indispensável para qualquer pessoa que gostaria de descobrir mais sobre os autistas adultos, mas obrigatória os próprios autistas adultos.

Autistas de todos os países, UNI-VOS!

Resenha Crítica do livro:
Guia Prático para Autistas Adultos - Como não surtar em situações do cotidiano 
(Daniela Sales, 2019 - Projeto Vida de Autista)

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Autógrafo do livro, feito pela Daniela. É ou não é uma frasezona da p****?

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Sobre "JAWS" (1975)

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TUBARÃO - filme de Steven Spielberg (1975) 

É particularmente difícil de acreditar que um filme como este possa ter sido concebido numa época em que não havia CGI (imagens geradas por computador), e com um orçamento de apenas US$ 10 milhões, hoje impensável para qualquer obra hollywoodiana do gênero. 

Mas aconteceu. 

“Tubarão” (Jaws, no original) praticamente inventou o conceito do “blockbuster” de verão norte-americano, com uma aventura sólida e muito bem desenvolvida. Este foi um dos primeiros trabalhos do então novato diretor Steven Spielberg, que aqui provou que não estava para brincadeiras. Utilizando a inventividade criativa com animatrônica que, quase 20 anos mais tarde, o consagraria ainda mais em “Jurassic Park”, Spielberg criou um clássico atemporal que mudou para sempre o imaginário popular sobre praias e banhos no mar.

O roteiro, baseado no livro homônimo de Peter Benchley, é bem simples e sem invencionices. Amity é uma cidadezinha litorânea, que depende essencialmente das atividades turísticas de verão para gerar renda e se sustentar, mas tudo muda quando um tubarão gigante decide se instalar por ali e encher a pança com mergulhadores. E o filme não demora a estabelecer essa problemática, com o bicho “aparecendo” nos minutos iniciais.

Mas por que “aparecendo” entre aspas?

Porque, visualmente, ele não é mostrado. Durante as filmagens, a produção teve um grande problema: o tubarão animatrônico se desfazia rapidamente debaixo d’água. Esta seria uma limitação fatal para qualquer diretor. Mas Spielberg não era qualquer diretor. A solução encontrada? Não mostrar o tubarão. Simples, não? Colocar uma câmera em primeira pessoa para simular a visão do tubarão e tudo o mais... Mas poderia falhar miseravelmente sem dois fatores adjacentes poderosos que, neste caso, foram cruciais. A primeira – e quase sempre lembrada – é a inesquecível trilha sonora de John Williams. Conhecido futuramente por trabalhos como “Star Wars”, “A Lista de Schindler” e “Jurassic Park”, Williams aqui faz músicas perfeitas para cada situação e sensação do filme, passando irretocavelmente pelos gêneros de aventura, suspense e terror. Mas isso não é tudo: a trilha sonora principal praticamente toma a forma do próprio tubarão como personagem na maior parte do tempo, fazendo o papel de anunciar ao público que a fera está ali, mesmo que não o estejamos vendo. Isso é estabelecido de forma eficiente desde as primeiras cenas a ponto de, nos momentos mais adiante, já nos condicionar a esperar novas aparições da criatura, em um exemplo muito esperto de condicionamento clássico (ou pavloviano). Uma trilha sonora que ganhou o imaginário popular pelos anos subsequentes e se tornou sinônimo do próprio suspense como um todo.

Já o segundo fator geralmente não é tão lembrado assim nas críticas, mas deixar de falar dele é um imenso pecado. É claro que me refiro ao trabalho de montagem da editora Verna Fields. Filmar e editar cenas com o animatrônico naquela época provavelmente não era uma tarefa nada simples, e isso engrandece ainda mais o trabalho de Verna. Praticamente não dá para sentir os cortes e o bicho parece ainda mais verossímil, tanto mostrado em cena quanto apenas sugerido através da câmera em primeira pessoa. Um trabalho genial de montagem, que rendeu a Verna o Oscar de melhor edição de 1976.

O roteiro não tem qualquer pressa em apresentar os personagens e estabelecer conflitos e, assim, os faz parcimoniosamente. Isso garante ao filme várias camadas de desenvolvimento que vão além do problema mais proeminente da trama, passando pela aventura e até mesmo pelo humor em algumas cenas, o que potencializa os momentos de suspense e de terror. 

Os personagens são muito bem construídos e possuem estereótipos bem claros, mas passam longe do unidimensional, principalmente os principais. E isso nos leva ao outro grande forte do filme: o elenco. Roy Scheider cumpre satisfatoriamente o papel do chefe de polícia Martin Brody e sua atuação é perfeita ao mostrar a paranoia que seu personagem sente a partir das notícias do primeiro ataque, e isso vai aumentando gradativamente conforme a ameaça do tubarão vai ficando cada vez maior e mais iminente. O personagem de Richard Dreyfuss contribui ainda mais com essa paranoia; conforme o desenrolar dos acontecimentos, o oceanógrafo Matt Hooper dá pistas cada sobre o tamanho do perigo que eles irão enfrentar. Mas este círculo não ficaria completo sem o competentíssimo Robert Shaw: seu personagem Quint é sisudo e valentão, e confronta diretamente o pragmatismo dos outros dois personagens, mas ao mesmo tempo traz uma colaboração primordial para o que será o confronto final com a criatura, que passa tanto pela vastidão de suas habilidades de caça quanto pela profundidade dramática de suas experiências – e aqui, especificamente, temos uma das melhores senão a melhor cena do filme todo – tudo graças a uma grande performance do ator. Também estão muito bem Lorraine Gary como Ellen Brody, esposa de Martin e um apoio emocional necessário ao protagonista, e Murray Hamilton como o prefeito Larry Vaugh, este último retratado de maneira algo vilanesca por se preocupar muito mais com o retorno financeiro das atividades de veraneio da cidade do que com o perigo da situação, mas posteriormente redimido pelo roteiro. Sua preocupação, afinal pode parecer mesquinha – e é, em primeira análise – mas ele cede ao bom senso no final das contas.

Mas todo esse texto seria inútil se não falássemos do clímax do filme: e é aqui que, depois de toda a paciência do diretor ao construir os dois primeiros atos, temos finalmente o embate final. E Spielberg sabia que, em algum momento, teria de mostrar o monstro em todo o seu poder e glória. Quando ele finalmente aparece, o baque é chocante. Em uma primeira experiência, no mínimo arregalamos os olhos, e nossos semblantes se assemelham ao de Brody quando ele diz para Quint a famosa frase: “você vai precisar de um barco maior”. O terceiro ato é extremamente ágil e a sequência não dá o menor respiro ao espectador, ao passo em que nos sentimos na pele dos protagonistas ao se deparar com o tamanho real do perigo. A inversão de papeis é inevitável: de caçadores, eles se tornam presas. Um clímax construído como foi todo o filme: com pura genialidade.

As limitações de produção da época e a narrativa “arrastada” da primeira metade do projeto são características que podem afastar os fãs mais jovens, geralmente ávidos por aventuras mais ágeis com criaturas perfeitas geradas em CGI. Mas se você sentar a bunda na cadeira por duas horas, calar sua boca e se permitir imergir na narrativa, tenho certeza de que muitas sensações diferentes você poderá extrair deste filme.

Por tudo isso, “Tubarão” é uma obra brilhante. Uma experiência quintessencial e obrigatória para qualquer fã de cinema. Um clássico do suspense. 

Nota: 10,0