quarta-feira, 30 de março de 2022

RESENHA CRÍTICA - O CUBO (1997)



Bom, esse é um texto que prometi a mim mesmo que faria há umas duas semanas e passei um tempo enrolando. Mas vou cumprir a promessa porque... francamente, esse filme merece uma análise. E merece demais mesmo. 

É um dos melhores filmes que assisti este ano e francamente, devia ter assistido bem antes. Mas eu sou aquela pessoa chata que vê tudo depois que todo mundo já viu, pois não tenho o famoso FOMO (Fear of Missing Out) que faz as pessoas ficarem paranoicas de perder o bonde das coisas. Acho que isso dá certa paz e liberdade pra gente. Estou vendo Falcão e o Soldado Invernal tipo 1 ano depois do lançamento e estou suave com isso, porque... por que não?

"O Cubo" é um filme de terror do ano 1997, dirigido pelo então estreante Vincenzo Natali. E este é provavelmente o filme mais famoso de Natali, ainda que ele tenha feito "Campo do Medo", adaptação de uma obra do Stephen King. Aqui, ele mostra a que veio, entregando um filme genuinamente competente e de certa forma bem singular, ainda mais para alguém que está estreando em direção de cinema. Ele seguramente mostra qualidades de veterano.

A trama é bem simples e direto ao ponto: alguns estranhos estão presos numa estrutura em forma de Cubo, recheada de salas interligadas e rigorosamente idênticas, e precisam escapar desse Cubo. Sem contexto de por que estariam ali, sem cenas prévias. Eles acordam ali e sabem que precisam sair. O problema é que o Cubo é repleto de salas com armadilhas mortais e então eles precisam se esquivar dessas salas para escapar. Claramente, o longa foi uma das inspirações de filmes torture porn que viriam anos mais tarde, tais como Jogos Mortais e O Albergue, e séries como Round Seis. 

A cena inicial é provavelmente a mais marcante do filme. Temos um sobrevivente qualquer sem relação com o grupo principal de personagens, interpretado por Julien Richings (ícone dos filmes de horror, que depois fez a Morte em Sobrenatural) que inadvertidamente cai numa das armadilhas. É uma cena muito bem-feita e que estabelece muito bem a situação-limite onde os personagens estão inseridos. 

Há muitas coisas interessantes a se falar sobre "O Cubo". Então vou começar pela que mais me chama atenção: a simplicidade do cenário. É um filme que se passa quase todo em um único cenário, mas nunca fica chato ou maçante. O diretor tem ciência de que filmar tudo num único cenário poderia fazer as coisas ficarem bem chatas rapidamente e por isso faz questão de diversificar bastante a direção do ponto de vista estético. A fotografia tem larga colaboração nisso, com alguns diferentes tipos de planos sendo utilizados, sobretudo o plano holandês. 

Os atores são um caso à parte. Exceto por Julien Richings (que morre logo no começo) não há nenhum nome muito conhecido aqui, e isso ajuda demais na imersão. Não ter rostos conhecidos é interessante porque passa a sensação de que poderia ser qualquer um ali. E todos cumprem bem seu papel, sendo personagens bem críveis, cada um à sua maneira. 

A partir do momento em que eles começam a desvendar o enigma que envolve a progressão através no Cubo, a preocupação com as armadilhas vai sendo deixada um pouco de lado e dando lugar às relações entre os personagens. No começo, vemos todos (à exceção de um personagem) empenhados em achar uma solução e até mesmo sondando uns aos outros sobre suas vidas e funções na sociedade antes de acordarem ali, o que leva todos a sempre priorizar a colaboração num primeiro momento. É interessante também que o roteiro põe os personagens para imaginarem o que pode ser aquele lugar e por quê estão ali. O filme não dá nenhuma resposta para isso, no que faz MUITO bem, pois não ter respostas nesse contexto é mais engrandecedor e mais agoniante do que tê-las. Mas é curioso ver como cada um pensa a respeito, com direito até mesmo a uma das personagens acreditando em teoria da conspiração sobre como aquilo poderia ter sido feito pelo governo ou algo assim.

Mas a situação vai se complicando à medida que o tempo passa e a direção é eficaz em mostrar como a situação-limite vai deteriorando pouco a pouco essa relação, o que nos leva a uma potente subversão de expectativas sobre quem seriam os mocinhos e quem seriam os vilões. Pois a iminente degradação humana causada pela fome e pelo cansaço nos mostra que nem todos são o que parecem ser. A maquiagem dos personagens vai deixando-os fisicamente cada vez mais precários, o que funciona muito bem para aumentar a tensão e faz com que nos importemos mais com eles. E é nisso que um certo personagem, que parecia ser um altruísta, se revela um abusador, psicopata e um perigo a todos os outros, enquanto aqueles que pareciam inúteis ou egoístas se revelam muito proativos para ajudar a resolver o enigma do Cubo.

A trilha sonora, por sua vez, não é nenhum grande espetáculo, nem nada que eu procuraria no youtube para baixar e colocar no celular, acho que ela é facilmente esquecível de modo geral. Mas não atrapalha e cumpre bem os papéis narrativos que lhes cabe. Temos algumas batidas que funcionam para aumentar a tensão, mas não vai muito além.

Agora, falando como um autista, vejo com certa melancolia a popularização e massificação dos personagens autistas no cinema e nas séries de TV. Ok, a princípio, parece uma ótima ideia fazer isso. Ocorre que Hollywood quase sempre aposta no costumeiro estereótipo ambiguamente neuroatípico potencialmente com autismo de grau leve e não vai muito além de desenvolver o mesmo tipo de trama a partir disso. Paradoxalmente, acho que a maior felicidade de Cubo como filme (à parte dos muitos é que ainda nos mostra um personagem autista: Kazan. Os protagonistas encontram Kazan mais ou menos no meio do filme, percebem que ele tem autismo clássico e logo de cara se perguntam como ele sobreviveu até ali.

E aqui vemos que Kazan não é o tipo de autista que comumente aparece em filmes. Ele de fato precisa de cuidados básicos, mas ele não é completamente alheio à situação: tem uma noção mais ou menos clara do que está acontecendo e do que precisa fazer para sobreviver. No fim, descobrimos um plot-twist surpreendente: ele é peça-chave para a resolução do enigma do Cubo. Kazan é praticamente uma calculadora humana, e consegue decompor números astronômicos em fatores primos sem auxílio de calculadora. Conversando com minha psicóloga sobre o filme, ela me falou que não é raro autistas de modo geral, em especial os autistas clássicos, desenvolverem habilidades extraordinárias como esta.

Gosto, ainda, do fato de que Kazan é o único que consegue escapar com vida do Cubo. A pessoa com menos pretensões e habilidades de fazer conexões sociais é quem sobreviveu no final, o que é sem-dúvida uma quebra de estereótipo muito forte.

Cubo é um clássico do terror e um filme que praticamente ajudou a criar um subgênero do horror e que provoca excelentes discussões sobre a natureza humana e seus limites, com o bônus de ter um dos melhores personagens autistas da história da ficção.

Nota: 9,5