segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Hidden Figures (2016) - RESENHA CRÍTICA

Há filmes que são necessários para que lembremos que a barbárie está mais próxima do que talvez imaginemos ou pensemos, seja através do tempo, do espaço ou até dos dois simultaneamente. Afinal, não é incomum ouvirmos bobagens do tipo "o antirracismo hoje em dia é inútil, os pretos já conquistaram seu espaço". Esta afirmação é completamente estapafúrdia e encontra contestação sem que se precise fazer muito esforço. 

"Hidden Figures", filme de 2016 que comentaremos hoje, foi batizado em terras tupiniquins como "Estrelas Além do Tempo". Péssimo nome, preferi utilizar o original, que traduziria como "Figuras Escondidas". O nome oficial brasileiro da obra é, na pior das hipóteses, incompreensível de tão genérico. Zapear pelo streaming e ver esse nome não te traz nenhuma curiosidade especial a menos que você já tenha ouvido falar sobre o filme (foi o meu caso). O projeto é dirigido por Theodore Melfi e este é provavelmente seu projeto mais bem-sucedido até hoje, com indicações ao Oscar para melhor filme, melhor roteiro adaptado e melhor atriz coadjuvante para a já oscarizada Octavia Spencer. 

O filme acompanha a história de três mulheres que trabalham na NASA durante a corrida armamentista da Guerra Fria entre EUA e União Soviética: a matemática Katherine Goble Johnson (Taraji P. Henson), a Dorothy Vaughan (Octavia Spencer) e Mary Jackson (Janelle Monáe), bem como as dificuldades cotidianas que as três encontram para se encaixar em um ambiente completamente opressivo para pessoas "de cor" (sic). E bom, ao contrário do seu título chinfrim, o filme funciona muito bem em trazer toda a aura da sociedade estadunidense do começo dos anos 1960: ainda segregada racialmente por força de lei em vários estados do país. Está tudo muito bem à mostra. O roteiro do filme acerta ao fazer isso de maneira bem escrachada, mas com boas doses de humor ácido, onde se você ri, é de nervosismo e constrangimento. Gosto também que os roteiristas não apelaram para a fórmula fácil de definir as personagens apenas pela opressão: cada uma tem uma personalidade distinta e bem definida.


A cena inicial em que as protagonistas são abordadas por um policial é tensa na medida em que você geralmente sabe o que acontece quando a polícia aborda pessoas pretas, mas é seguida de uma aliviante quebra de expectativa. Daí em diante, o filme não economiza em jogar na nossa cara como essas personagens são oprimidas e o quanto precisam lutar até mesmo nas mais "simples" tarefas cotidianas. Para além das já conhecidas práticas segregadas de utilizar transportes coletivos ou ambientes públicos de modo geral, precisam andar mais de um canto a outro para fazer coisas como ir ao banheiro, não podem tomar café no mesmo bule que os brancos, precisam trabalhar às cegas com dados parciais que se desatualizam rapidamente e não podem nem assinar relatórios. Isso quando não são confundidas com zeladoras/faxineiras. A composição das cenas faz sempre questão de mostrar o isolamento dessas personagens em um ambiente que a todo tempo faz questão de deixar claro que elas não são bem-vindas, seja no enquadramento de câmera, na disposição dos personagens em certas cenas e até nas cores das roupas. Trabalho primoroso de direção de atores, fotografia e figurino. As cenas em que vemos a protagonista principal correr quase 1km para ir ao banheiro porque não havia banheiros disponíveis para ela no prédio onde trabalhava são cortantes e culminam naquela que provavelmente é a melhor cena do filme.

Tudo isso é viabilizado por um poderoso elenco. Taraji P. Henson emociona demais como Katherine Goble, mostrando uma performance sensível a todas as opressões cortantes sofridas pela personagem, mas com muita força de vontade para fazer aquilo que acha certo até estourar suas emoções. Octavia Spencer é brilhante ao mostrar em Dorothy Vaughan uma personagem preta em posição de poder, mas ainda muito tolhida em relação a seus colegas brancos em posições similares e que faz questão de deixar isso muito claro. Janelle Monáe é muito eficaz como Mary Jackson, pois consegue imprimir toda a gana e vontade de sua personagem em aprender e se tornar uma cientista mais capaz, mas dando de cara com o sistema educacional bastante segregado e um sistema judicial ainda cambaleante em tolher tal segregação (lembremos que as leis federais dos EUA geralmente possuem jurisdição fragmentada nos estados até os dias de hoje). 

O elenco de apoio é também especial e com alguns nomes de peso: Kevin Costner constrói um chefe durão, porém sensível em algum nível às questões raciais e que se mostra um bom mentor para Katherine. Kirsten Dunst e Jim Parsons são muito eficazes como figuras de poder autoritárias e repletas de preconceitos raciais (embora seja difícil não ver a Mary Jane em Dunst e Parsons esteja só reprisando em alguns níveis o Sheldon Cooper de "The Big Bang Theory"), enquanto Mahershala Ali interpreta Jim Johnson como um bom personagem em desconstrução ideológica enquanto serve como par romântico para a protagonista principal. Gosto demais de Aldis Hodge, a composição de seu Levi Jackson, como um personagem que anseia lutar num ativismo direto ao mesmo tempo em que precisa mudar suas próprias concepções ideológicas em relação ao trabalho da esposa.

De resto, acho que preciso comentar a hipocrisia da frase principal que geralmente é entendida deste filme, que é "Nunca deixe de lutar". Convido a todas e todos vocês, meus (poucos) leitores, a uma reflexão crítica. Será que este lema deveria realmente ser o objetivo da população preta? Ora, o objetivo principal deveria ser a criação de um mundo onde os preconceitos de classe/raciais não mais teriam sequer condições de existir, no qual a necessidade de lutar se tornaria, portanto, obsoleta. Ora, a sociedade que até aquele momento melhor representava tais perspectivas de superação do racismo, embora não desprovida de contradições, era justamente a União Soviética e o ideal comunista... que os estadunidenses capitalistas e a NASA - capitalistas - combatiam. O "melhor" comentário que o filme tem a fazer sobre isso é chamar os soviéticos de "canalhas" sem um pingo de ironia sequer pela voz do personagem Al Harrison, de Kevin Costner. 

O preconceito racial prosperou, prospera e prosperará enquanto formos subjugados por um regime baseado na expropriação e na exploração do homem pelo homem.

Ainda assim, "Hidden Figures" é um ótimo filme, com comentário social sólido e importante sobre o racismo de um modo geral e que ganha força pelo seu sólido roteiro, elenco impecável e direção precisa, mas também pelo fato de ser um filme que dificilmente deixará de ser atual a curto prazo.

Nota: 9,0

domingo, 21 de agosto de 2022

Cruella (2021) - RESENHA CRÍTICA


Desde criança, sempre gostei de desenhos da Disney, embora nunca fossem os meus favoritos. Tom & Jerry sempre foi meu carro chefe, seguido do Pica-Pau e dos desenhos da Looney Tunes, especialmente Papa Léguas & Coyote. Dos clássicos Disney, "O Rei Leão" é de longe o meu favorito de sempre, com uma história belíssima cheia de alegorias a maturidade e sobre como devemos assumir as responsabilidades que se apresentam. Nunca vi muito, porém, o desenho "101 Dálmatas" de 1997, do qual se originou o filme que comentarei nesse texto se apresenta, porém vi alguns episódios e de fato era muito divertido ver as aventuras dos cães pintados contra a malvada Cruella de Vil.

O filme do qual falaremos, porém, ensaia jogar um olhar bem mais profundo e interessante sobre esta personagem. Lançado em 2021 e dirigido por Craig Gillespie (também dirigiu o ótimo "Eu, Tonya"), "Cruella" conta a história de Estella (Emma Stone), uma garota de cabelo peculiar e muitos sonhos, mas que come o pão que o diabo amassou no processo de realizá-los e que descobrirá os dissabores do mundo da moda da pior forma, e segredos terríveis sobre si mesma, na qual pouco a pouco se tornará a clássica vilã. A Disney tem acertado em cheio nas repaginações que tem feito de seus vilões, trazendo-os como figuras trágicas e complexas no lugar das abordagens malvadas típicas. E aqui não é diferente. 

A natureza do roteiro de "Cruella" é relativamente simples: trata-se de uma narrativa shakesperiana de tragédia e sucessão hereditária de poder, o que não deixa de ter seu aspecto de clichê. Mas o filme é escrito de uma forma que o espectador desavisado acaba não percebendo até que a revelação principal aconteça, e ela é impactante. Um jogo de gato e rato no qual a protagonista vai cada vez mais submetendo a antagonista Baronesa (Emma Thompson) a sucessivos constrangimentos e deixando claro que o reinado da rival no mundo da moda está prestes a colapsar. 

Falando em moda, é difícil assistir a este projeto e não ficar encantado/deslumbrado com a parte de figurino. O filme é quase inteiro um desfile de moda, pois os momentos mais impactantes quase todos giram em torno de figurinos espalhafatosos belíssimos e apaixonantes, criados pela figurinista britânica Jenny Beavan. A parte visual do filme é também muito boa, com a fotografia retratando uma Londres pitoresca e em um processo de transformação urbana quase tão marcado quanto os maravilhosos figurinos de Beavan, com certo contraste entre a arquitetura clássica e a arquitetura mais contemporânea da segunda metade do século XX.

O filme explora de maneira muito contundente a relação opressiva entre a Baronesa e suas designers do ateliê de moda, na qual ela extrai e expropria completamente os resultados do árduo trabalho dos designers, os tratando sempre como ativos dispensáveis, o que vai deixando o espectador com cada vez mais abuso dela e consequentemente mais simpáticos à ação sabotadora de Estella/Cruella. Há toda uma construção de perfil narcisista e capitalista selvagem da personagem de Thompson que funciona muito bem tanto para efeitos dramáticos inerentes ao próprio filme, quanto para leituras críticas externas a ele. Afinal, se você trabalhou no setor de criação de uma empresa, sabe muito bem que o que você cria no âmbito do trabalho não é seu, e sim pertence a quem paga seu salário, que provavelmente usará sua criação para gerar valor e mais valor para ele próprio.

Gosto que este filme consegue reproduzir uma atmosfera cômica similar às animações sem necessariamente tentar apelar para aspectos que fatalmente fariam o projeto parecer muito caricato, como vários live-actions dos anos 1990 (tipo "O Máskara" ou "Uma Cilada para Roger Rabbit") fizeram ao incluir efeitos especiais e sonoros de desenhos. Em vez disso, aposta-se muito na comédia ácida e na direção dos atores para extrair algo leve e ao mesmo tempo emocional e sensível. Contudo, a direção às vezes parece passar por uma confusão tonal, ao passo que parece não ter tanta clareza naquilo que quer passar. Trama adulta? Comédia? Caricatura? O filme transita por essas três searas, nem sempre da melhor maneira.

Por falar em atores, o elenco dá um show. As já citadas Emma Stone e Emma Thompson são a dupla principal e estão irretocáveis. Stone consegue fazer sua Cruella ser muito identificável em quase todos os aspectos, desde a moça desajeitada e socialmente desfavorecida até a predadora amante da moda que ela se torna, mas sem tentar justificar suas atitudes mais vilanescas. Já Thompson atribui à Baronesa um efetivo poderoso ar de superioridade, com todos os já citados tiques de narcisismo e de empresária bilionária (bilionário tem que se foder, lembremos) que realmente funcionam muito bem. O elenco de apoio também funciona muito bem, Joel Fry e Paul Walter Hauser fazem a icônica dupla Horace e Jasper, e conseguem atribuir a esses dois personagens toda a aura de capangas atrapalhados divertidos que tinham na animação, mas também acrescenta uma personalidade questionadora aos dois, ao passo em que presenciam as crescentes contradições da protagonista. Temos também as boas presenças de John McCrea, Kirby Howell-Baptiste e do sempre confiável Mark Strong (de "Sherlock Holmes" e "Shazam").

Ao final da exibição, "Cruella" é um filme divertidíssimo e envolvente em vários aspectos, que se por um lado é por vezes confuso no tom desejado (às vezes muito adulto para ser Disney ou muito Disney para ser adulto e os dois tons nem sempre conversam muito bem) e com certeza clichê em alguns momentos (a narrativa é derivativa, embora se venda como original) por outro lado como pontos altos o visual estonteante do figurino e a atuação da dupla principal. Vale a pena? Com certeza.

Nota: 8,5