sexta-feira, 21 de junho de 2024

Mônaco-1984: uma vitória tirada de Senna? Reflexões sobre responsabilidade e segurança no esporte a motor

Faz tempo que não escrevo nesse blog, e sinceramente não sinto saudades de fazê-lo. O tempo é curto, o dinheiro não vai se ganhar sozinho e o fato é que eu estou, há muito tempo, sem tanta inspiração para a escrita. 

Jamais eu teria encontrado
isso aqui na Amazon, hoje
responsável por praticamente
destruir o comércio nacional de livros

Este blog começou como um lugar onde eu escrevia exclusivamente sobre automobilismo. E jamais voltará a ser assim. Pois o mundo mudou, e eu mudei com ele. O automobilismo era, para mim, um hiperfoco gigantesco. Para quem me conhece, sou autista nível 1 de suporte. Para pessoas como nós, é muito fácil cair em hiperfocos que tomam literalmente todo o nosso tempo e dominam a nossa mente de tal forma que só queremos saber daquilo. Hiperfoco, aliás, que foi muito forte em minha infância e adolescência quando se trata de automobilismo, em especial, a Fórmula 1. Na foto ao lado, um anuário que encontrei recentemente, que deu uma reacendida em meu hiperfoco nos últimos dias. Felizmente, de uma maneira bem menos destrutiva para mim do que havia sido em meu período mais infante.

Mas enfim, isso tudo é uma grande embromação pra tornar o texto um pouquinho maior, e fazer as pessoas ficarem um pouco mais de tempo neste espaço. 

Brincadeira. Ou não. Risos.

Ao assunto do título, pois.



O Grande Prêmio de Mônaco de 1984 entrou para a história do automobilismo.

E não é para menos. É uma corrida absolutamente histórica, que apresentou ao mundo dois talentos gigantescos, duas promessas do que seria a Fórmula 1 na segunda metade dos anos 80 em diante.

Ayrton Senna e Stefan Bellof, naquela tarde diluvial, apresentaram seus cartões de visitas ao mundo, e vinham demolindo meio grid rumo à liderança do Grand Prix. O mundo estava boquiaberto ao ver como Senna, no molhado, ao volante da relativamente modesta Toleman (já falarei sobre este "relativamente"), vinha jambrolhando o grid, com direito a uma ultrapassagem por fora na entrada da Saint Devote sobre Niki Lauda. Bellof, por sua vez, vinha também fazendo corrida brilhante, e era o carro mais veloz da pista quando a prova foi encerrada. 

Falarei isso baixinho aqui pra vocês... mais rápido que Ayrton, inclusive.

Cabe dizer que o carro de Senna podia não ser nenhuma brastemp, mas foi projetado por ninguém menos que Rory Byrne e Pat Symonds. Byrne se consagrou com as Ferrari de Michael Schumacher anos depois, e Symonds se tornou o projetista responsável pelas Renault dos dois títulos de Fernando Alonso. Além disso, era empurrado pelo motor Hart 415T, que, de acordo com o blog britânico Stavtech nesse texto aqui, em 1984 poderia chegar a 800 cavalos, o que não era um déficit tão grande se comparado a outros times da época.

Quando a corrida se aproximava das voltas 30 a 31, Alain Prost, da McLaren-TAG Porsche, que havia largado da pole, acenava aos boxes, solicitando à direção de prova que a corrida fosse encerrada, pois em sua visão, não havia condições para continuar. O diretor de prova, Jacky Ickx, encerrou a contenda no 31º giro. Ao encerrar a prova em bandeira vermelha, valiam os resultados da volta anterior, e por isso, a vitória ficou com Prost, com Senna em segundo e Bellof em terceiro (depois, o alemão seria desclassificado, pois as Tyrrell estavam abaixo do peso). Resultado que, por ironia do destino, fez Prost perder o campeonato mundial para Lauda por meio ponto. Risos.


A impressão geral que ficou deste resultado foi de certa revolta passivo-agressiva em relação a esse desfecho, com requintes de teoria da conspiração e meias-verdades que deram tônus muscular à tese de que o regulamento teria sido ma
nipulado para dar a vitória a Prost, McLaren e Porsche (a fornecedora de motores do carro do francês). E quando você junta todos estes fatores, tudo faz muito sentido. Ora, Jacky Ickx era um piloto histórico da marca alemã no Mundial de Endurance, tendo vencido as 24 Horas de Le Mans seis vezes, quatro delas pilotando carros históricos da esquadra de Stuttgart, como o 936 e o 956. A McLaren era já estabelecida como um time tradicional na Fórmula 1, com títulos de Emerson Fittipaldi e James Hunt em anos anteriores. Prost era francês, sendo Mônaco um principado que ficava muito próximo do território francês. E, claro, havia Jean-Marie Balestre, o protótipo de ditador, que tinha relação extremamente próxima do piloto da McLaren, e que nos anos seguintes, seria o carrasco da decisão de 1989 que favoreceu o tricampeonato de Prost após a batida proposital em Senna. E não ajudou o fato de que em 1996, Balestre ter declarado à imprensa que teria dado uma "ajudinha" para Prost levar o caneco na disputa contra o brasileiro.

Tudo isso deixou o imaginário popular brasileiro muito suscetível à ideia de que Ayrton Senna deveria ter sete vitórias no GP de Mônaco, e não teve porque a cartolagem na categoria jogou a favor de Prost.

Mas será que foi realmente isso? Será mesmo que todos estes fatores esgotam o assunto?

Em minha visão, não. E esta é a razão de esse texto existir.

Em primeiro lugar, uma pequena nota de rodapé no meio do texto, pois quero tirar o meu da reta. Não sou um "hater" de Ayrton Senna. Admiro o legado do brasileiro, um dos maiores e melhores pilotos de todos os tempos, possuo e li algumas das MUITAS biografias já produzidas sobre Ayrton. Mas, definitivamente, não sou um passador de pano, e acredito sim que o brasileiro foi um piloto falível, eventualmente um piloto sujo na pista. Sim, para mim, a batida com Prost em 1990 foi culpa dele e eu não dou viés de validação a essa batida por ser uma vingança pessoal pela farofada do ano anterior. Cada um com sua consciência, a minha está limpíssima. Não levo revanchismos às últimas consequências como muitos fãs brasileiros fazem, tais como aqueles que adoram deixar mensagens carinhosas nas redes sociais, como "Michael Schumacher está pagando em vida o mal que fez nas pistas da Fórmula 1". Sem mais comentários, esse trecho do texto ficou bem maior do que deveria.

Voltando ao tema do texto.

Não acho que o desfecho da prova de Mônaco foi uma injustiça contra Senna e uma grande conspiração para favorecer Prost. Por alguns motivos, os quais elencarei adiante.

De fato, a chuva que caía em Monte Carlo aquele dia era intensa. Tão intensa que o início da prova foi atrasado em 45 minutos. Alguns pilotos já haviam sofrido acidentes àquela altura do Grand Prix, incluindo um acidente na largada que sacou do campo as duas Renault, de Patrick Tambay e Derek Warwick. Ambos saíram machucados: Tambay quebrou uma perna, e Warwick saiu com escoriações na perna direita, num acidente que também envolveu Andrea de Cesaris e François Hesnault, ambos da Ligier. Nigel Mansell, que chegou a liderar, espatifou sua Lotus no guard-rail na subida após a Saint Devote, e depois na entrada da Mirabeau. E houve outros acidentes envolvendo outros pilotos, como Niki Lauda e do próprio Ayrton Senna, que danificou sua suspensão dianteira direita em uma batida, e ignorou ordens de equipe para não utilizar as zebras dali em diante, deteriorando cada vez mais a suspensão de sua TG184. 

Como afirma o insuspeito jornalista Luis Fernando Ramos neste texto aqui, a chuva, que já era enorme no começo da corrida, se intensificou da volta 20 em diante, e nas voltas anteriores à interrupção, os pilotos já registravam tempos cerca de cinco segundos mais lentos do que já haviam registrado anteriormente. A corrida, de fato, estava perigosa. Inclusive, o carro de Senna corria sério risco de se desmanchar devido a este dano na suspensão em poucas voltas se a corrida não fosse encerrada. Ramos, inclusive, se pergunta no texto acima linkado, o que poderia ter acontecido se o carro de Senna tivesse se desmanchado, por exemplo, na saída do Túnel, citando o gravíssimo acidente de Karl Wendlinger na mesma pista, dez anos depois. Do ponto de vista da segurança, a decisão de Jacky Ickx, como se pode ver, foi absolutamente acertada.

Já a desistência de Alain Prost e suas solicitações efusivas para encerrar a prova? Será que era mesmo só porque queria vencer? Deixo isso para a interpretação do leitor, mas vou elaborar uma digressão no texto para comentar um pouco sobre questões de segurança no automobilismo. 


A princípio, cabe dizer o seguinte: Jo Ramirez, coordenador da McLaren, teria confirmado que Prost vinha sofrendo com problemas em seus freios dianteiros, e estava utilizando apenas os freios traseiros e freio-motor (ou seja, freando o carro utilizando os giros do motor para controlar a velocidade). Em pista seca isso já seria um problema. Em chuva, logicamente ainda mais perigoso. E aqui vou apenas - APENAS - supor que Prost estava informado via rádio acerca do acidente grave envolvendo Warwick e Tambay na primeira volta. Fora os outros acidentes que haviam ocorrido no decorrer da disputa.

Mas cabe também falar sobre outro aspecto relevante.

Alain Prost, àquela época, era um dos principais defensores da causa pela segurança no automobilismo. Os anos 80 e a era Turbo haviam transformado os motores da Fórmula 1, que já eram rápidos, em verdadeiros monstros de desempenho. Mas isso também trouxe sérios impactos na segurança. Mesmo com relativamente menos potência, os anos 70 também haviam sido marcados por acidentes assustadores resultando em morte, como os de Roger Williamson, Ronnie Peterson e Rolf Stommelen, e o famoso acidente em 1976 com Niki Lauda no Nurburgring-Nordschleife, que quase tirou a vida do austríaco e deixou seu rosto irreconhecível.

Os GPs de Mônaco nos anos anteriores vinham sendo corridas especialmente esquisitas no quesito segurança. A edição de 1982 da corrida no principado, aliás, ocorreu logo depois do GP da Bélgica que havia vitimado Gilles Villeneuve de maneira assustadora. E também foi uma corrida de acidentes estranhos. O próprio Prost bateu na saída da Chicane do Porto, num acidente que desmanchou o bólido e teve pneu voando pela pista. Poucos meses depois, o GP da Alemanha de 1982 teve o gravíssimo acidente entre Prost e Didier Pironi, da Ferrari, no qual Pironi encheu a traseira da Renault com força e  capotou algumas vezes antes do carro parar. Não há imagens do acidente, mas o fato é que Pironi ficou preso no carro por bastante tempo antes de ser resgatado. Nelson Piquet, que o socorreu, foi quem retirou o cinto e o capacete de Pironi, e ficou chocado ao ver a imagem angustiante do piloto, que sangrava muito e teve confirmadas sérias lesões em suas duas pernas. O acidente encerrou ali mesmo a carreira de Pironi na Fórmula 1. Importante lembrar, também, que no mesmo ano, morreu Riccardo Paletti no GP do Canadá de 1982, em outro acidente violento. 

É possível dizer que Prost tenha sofrido um transtorno de estresse pós-traumático após todos esses acidentes? Não cheguei a encontrar nenhuma fonte oficial confirmando, mas há evidências de que sim. Inclusive, de posse de tais informações, torna-se compreensível o motivo de Alain ser um dos pilotos que mais tinham dificuldade em condições de pista molhada, que inclusive o tornavam presa fácil em certas corridas históricas disputadas sob chuva nos anos seguintes, como o GP da Inglaterra de 1988 e o GP de San Marino de 1991. Este último, aliás, marcado pela infame rodada de Prost ainda na volta de aquecimento de pneus. Hoje, costumamos achar as corridas sob chuva muito divertidas, pela quantidade de caos e imprevisibilidade que normalmente elas trazem, mas o fato é que correr sob chuva é e sempre foi um grande desafio para a Fórmula 1 em termos de segurança.

Prevejo alguns comentários do tipo "ah, mas a Fórmula 1 sempre foi perigosa, o automobilismo sempre foi esporte de risco, então mortes fazem parte". 

E é verdade, o automobilismo é perigoso pela própria natureza do esporte: pilotos correm uns contra os outros em carros de altíssima velocidade, podendo se estatelar no muro a qualquer momento. Mas as mortes são sempre traumáticas quando acontecem, e põem o esporte em tremendo questionamento sobre sua própria existência, de modo que mudanças em prol da segurança sempre foram necessárias a fim de evitar ao máximo a possibilidade de qualquer acidente mais grave acontecer. Lembremos que o próprio Senna foi tirado de nós muito cedo devido a falhas de segurança. Portanto, nós, como fãs brasileiros, temos a obrigação de ser os primeiros a exigir corridas mais seguras.

Minha conclusão, depois de tudo, é que o Grande Prêmio de Mônaco de 1984 não foi "tirado de Senna". Ele foi interrompido corretamente, sustentado por evidências de que a corrida estava perigosa demais para continuar, em uma categoria já traumatizada por três acidentes assustadores nos anos anteriores, com direito a duas violentas mortes. Seus principais pilotos, como Alain Prost e Nelson Piquet, advogavam por mais segurança nas corridas. Mortes nunca foram admissíveis, mas nessa época, elas definitivamente começaram a se tornar intoleráveis. Ainda bem!

E para a pachecada que adora uma teoria da conspiração, fica a sugestão de reflexão, pois além de tudo que foi apresentado acima, também temos indícios suficientes para concluir que, caso a corrida continuasse, o vencedor poderia muito bem não ter sido o brasileiro àquela tarde.

Haverá quem leia esse texto e siga firme na tese conspiratória? Claro que haverá.

Por mim, sigo cá com minha consciência tranquila.



3 comentários:

  1. Grande Pádua com visao alem do alcance, gostei demais de seu texto, poste mais

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  2. Gostei de ler. Ainda acrescento mais uma coisa: O Ickx acabou por ser multado pela FISA em cinco mil libras por não ter consultado os comissários quando tomou a decisão. E tem outra coisa, pouco falada: quando interrompeu a corrida, tinham mostrado a bandeira de xadrez, assinalando o final da corrida, logo, acabou bem antes da marca dos 75 por cento, que, claro, deu metade dos pontos. E claro, conheces a ironia da decisão.

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