quinta-feira, 3 de novembro de 2022

"O HOMEM INVISÍVEL" (2020) - RESENHA CRÍTICA




A linguagem do cinema é extremamente multifacetada. É uma forma de arte capaz de despertar no público as mais diversas sensações, atribuir significados através da mera combinação de imagens e sons e literalmente produzir alegria, serenidade, angústia, tristeza... e medo. O medo é um dos sentimentos mais poderosos que um longa pode causar, pois ele literalmente dribla a limitação estabelecida pela tela (a tal da quarta parede) e atinge diretamente o espectador. É muito fácil sentir coisas como felicidade, tranquilidade e humor enquanto se vê um filme. Mas quando se está protegido pela tela, apenas um projeto muito bom e que sabe o que está fazendo pode fazer você sentir o MEDO propriamente dito.

Há muitas formas de um terror fazer isso. Seja apelando a medos alegóricos (figuras naturalmente bizarras, como palhaços, ou os serial killers dos "slashers") ou a assombrações e coisas relativas ao espiritual, não há muito mistério, não à toa esse tipo de projeto é extremamente popular no terror, sendo inclusive temas muito recorrentes nas produções do gênero. Mas o melhor tipo, a meu juízo, é aquele tipo de terror que busca explorar as ansiedades mais reais e palpáveis, como o fato de não conhecermos de verdade as pessoas de quem nos aproximamos, ou literalmente lidar com um stalker (perseguidor). É por isso, por exemplo, que obras como "Psicose" e "Halloween - A Noite do Terror", funcionam tão bem até os dias de hoje, mesmo tendo sobre eles a implacável ação do tempo. Acredito que não haja terror mais eficiente do que aquele que reproduz, em alguma escala, seus medos mais íntimos, que toca em suas feridas mais abertas e se aproveita da sua maior vulnerabilidade. 

E é neste quadro que se localiza "O Homem Invisível", que comentarei a seguir. Lançado em 2020, é uma adaptação do livro homônimo publicado em 1897 pelo autor H.G. Wells, que por sua vez é um clássico da ficção científica. do qual também se originou o clássico filme de 1933. O filme é escrito e dirigido por Leigh Whannell (roteirista de "Jogos Mortais") e estrela Elisabeth Moss, Aldis Hodge, Oliver Jackson-Cohen e Storm Reid. Na trama, Olsen vive Cecilia, uma mulher que foge de seu marido, Adrian (Jackson-Cohen), um cientista pioneiro em ótica, após viver um relacionamento profundamente abusivo nas mãos dele. Logo depois, Adrian supostamente morre, mas coisas estranhas começam a acontecer com Cecília e ela passa a duvidar da morte de Adrian, suspeitar que de alguma forma ele tenha ficado invisível e a questionar sua própria sanidade.

A direção de Whannell é muito eficiente na construção da tensão desde o começo, na casa mostrando como a protagonista se encontra isolada e sempre alerta, indicando que mesmo na aparente quietude, ela está em perigo. O primeiro ato é muito eficaz em estabelecer a situação na qual o filme se desenvolve, com planos longos e bem abertos que deixam claro que o ambiente onde ela vive é extremamente opressor. Há também um contraste entre essas cenas e alguns momentos mais leves entre Cecília, sua irmã e seus amigos, que serve para gerar identificação do público com esses personagens (são muito bons, exceção apenas para a irmã). O ritmo permanece cadenciado até o segundo ato, o que é ótimo, pois vemos uma quantidade cada vez mais bizarra de coisas acontecendo e sentindo a angústia da protagonista, que vai cada vez mais sendo boicotada, privada de sua vida social e literalmente sendo tida como louca (o famoso gaslighting). Tudo isso é muito crível e você se coloca no lugar de Cecília sem muita dificuldade. 

O roteiro é extremamente eficaz em explorar toda a verossimilhança da situação vivida pela protagonista e fundi-la isso com o aspecto da ficção científica. E traz um importante comentário social:  isolamento experimentado pela personagem de Moss não é nada muito diferente do isolamento que muitas pessoas vítimas de relacionamentos tóxicos, em sua maioria mulheres, viveram ou vivem na vida real. A mistura produz um clima de tensão, angústia e paranoia crescentes. O filme, porém, não é perfeito neste aspecto: há uma quebra de ritmo muito evidente do segundo para o terceiro ato, no qual o projeto abandona o ótimo clima de tensão e suspense estabelecidos para dar lugar a uma ação mais direta, com a protagonista finalmente tomando uma atitude sobre tudo o que está vivendo. Eu não exatamente gosto disso, mas acho que funciona para o grande esquema das coisas aqui. 

Gosto, em algum nível, da ironia do filme em mostrar a personagem de Moss tendo que falar coisas como "ele está aqui conosco" ou "foi ele, não eu" em situações que desafiam a lógica e o ceticismo dos outros personagens, numa vibe parecida com a do Andy Barclay em "Brinquedo Assassino". Há certas semelhanças entre os dois projetos, não há como não notar.

Mas nada disso seria possível sem a presença inigualável da atriz Elisabeth Moss. Não, sério, não seria absurdo se todo o trecho sobre atuação desta resenha fosse só sobre ela. Todas as circunstâncias aqui inscritas perpassam sua atuação, que é nada menos do que brilhante. Ela consegue carregar consigo muita verdade e verossimilhança em relação a tudo o que sua personagem passa, todo o pânico e a agorafobia que ela sente, de maneira brilhante. Como o vilão passa o tempo quase todo na invisibilidade, ela precisa fazer muita atuação corporal sozinha, e dá um verdadeiro show. É importante também ressaltar que sua personagem não é o típico estereótipo do protagonista burro de filme de terror: Cecília é esperta, descobre as coisas que precisa descobrir numa progressão lógica e verossímil, o que é sempre muito bem-vindo, e sabe o que precisa fazer para sobreviver aos perigos mais imediatos quando estes se apresentam. No elenco de apoio, Aldis Hodge está muito bem e Oliver Jackson-Cohen nem faz tanta coisa assim durante o filme, mas cumpre um papel importante de maneira bem eficaz no ato final.

Tenho também que dar um destaque ENORME para o design de som e a trilha sonora de Benjamin Wallfisch. O som do filme nas cenas de tensão faz até mesmo cada passo dado pelos personagens parecer perigoso, e dadas as características especiais do vilão, cada mínimo barulho pode ser indicativo de um perigo à espreita. Diante deste quadro, o uso inteligente e minimalista da trilha sonora se faz necessário, e de fato isso é feito. Não há aqui a típica boba pontuação de jumpscares a partir dos acordes de trilha: isto dá lugar ao silêncio quase absoluto, porém muito mais efetivo, quase torturante. Nas cenas mais de ação, há o uso de uma trilha meio bizarra, com notas estridentes, e um pouco mais agitada, porém apropriada.

No fim, "O Homem Invisível" é um ótimo terror de ficção científica com um comentário social muito pertinente sobre relacionamentos abusivos, que me conquistou pela direção eficiente e pelo trabalho maravilhoso da atriz principal. Brilhante trabalho de atualização do clássico que lhe deu origem.

Nota: 9,0


segunda-feira, 31 de outubro de 2022

X-MEN 3: O CONFRONTO FINAL (2006) - RESENHA CRÍTICA


Escrevo esta resenha crítica em meio ao dia mais importante da história política recente do país e eufórico após uma vitória política para mim e alguns de meus chegados, o que é no mínimo inusitado. Comemorar enquanto escreve um texto sobre um filme? Bom, cada um tem sua forma de aproveitar um momento e esse talvez seja o meu.

Isso, obviamente, não salvará "X-Men 3" de levar uma boa surra, pois vou adiantar logo, este filme é ruim pra cacete e eu me envergonho de um dia ter dito para alguém que gostava dele. Sim, eu gostava muito pelos idos de 2014. Mas nos últimos anos eu acabei desenvolvendo um olhar um pouquinho mais sofisticado para cinema, capaz de entender textos com mais nuances narrativas.

Mas antes de começar a falar mal desse filme, acho que é justo compartilhar aqui a minha opinião num geral sobre os X-Men como grupo de heróis e a franquia X-Men no cinema até antes desse projeto ser lançado. Eu goto bastante desta super-equipe e de como ela sempre teve um papel de vanguarda no que diz respeito a discussões políticas neste ambiente de cultura pop e quadrinhos, e eu gosto muito mais e me identifico com eles do que, por exemplo, os Vingadores, que se tornaram muito famosos nos últimos dez anos. Não à toa, depois do Homem-Aranha, o meu personagem favorito da Marvel Comics é o Magneto, que é um excelente personagem e que muitas vezes transcende o papel vilanesco atribuído a ele, tanto nos gibis quanto nos filmes.

"X-Men" foi um baita de um filme, que praticamente inaugurou o grande esquema das coisas no que diz respeito a blockbusters de super-heróis, reunindo um elenco de altíssimo peso e consagrando Hugh Jackman como um dos grandes astros do cinema blockbuster desde então. OK, tecnicamente falando, "Blade" (1998) foi o longa que oficialmente começou a parada toda, mas não há como ignorar que o diretor Bryan Singer estabeleceu um parâmetro para o cinema de franquia de super-heróis, que por sua vez foi posteriormente lapidado por gente Kevin Feige no Universo Cinematográfico da Marvel. Feige, aliás, é produtor de praticamente todos os filmes com personagens Marvel desde "Blade". X-Men 2, por sua vez, é uma continuação sólida que não apenas dá continuidade ao primeiro de maneira satisfatória, mas também expande a discussão sobre tolerância e respeito às diferenças de maneiras até bem pertinentes. E é uma boa adaptação do quadrinho "Deus ama, o Homem mata", de Chris Claremont. E posso dizer que o visual do Magneto nessa trilogia é o meu favorito de todas as representações do personagem em qualquer mídia: elegante, poderoso, um verdadeiro lorde nas ações e nos trejeitos do ator, Ian McKellen, que transborda carisma.

Já o filme sobre o qual falaremos... bem, ele tem uma produção complicada. O diretor Bryan Singer se ausentou do projeto para dirigir "Superman - O Retorno" e deixou a batata assando nas mãos de Brett Ratner, um diretor bem questionável, mas que fez um trabalho até decente em filmes como "Red Dragon" de 2002 e a franquia "A Hora do Rush" (até o segundo filme), mas também produziu a BOMBA chamada "Dragon Ball Evolution". E bem, importante mencionar que depois ele foi acusado de assédio sexual por pelo menos duas atrizes. Portanto, é importante frisar que estamos aqui falando de um vagabundo oportunista e criminoso sexual.

A trama é a seguinte: Magneto está à solta após os eventos de X-Men 2 e continua empenhado em criar um exército de mutantes para dar um sacode na humanidade. O governo dos EUA encontra um garoto capaz de anular e suprimir os poderes dos mutantes e o utiliza para criar uma cura, contra a qual Magneto e seu secto busca se opor. Jean Grey reaparece como a entidade da Força Fênix e se torna uma ameaça para mutantes e humanos, e Wolverine enfrenta um dilema emocional entre o amor que sente por Jean e o provável desfecho no qual ela talvez deva morrer. O cientista responsável pela cura é pai de um mutante que acaba se tornando o Anjo (personagem da equipe original dos X-Men de 1963) e os dois possuem uma rusga mal resolvida, na qual o pai quer suprimir seus poderes, mas o filho quer viver sua própria vida abraçando esses poderes (uma alusão nada sutil a gays saindo do armário, o que não é nada ruim no mérito, mas é bem descompensado na forma). 

Logo de cara, importante notar que o filme é ABARROTADO de tramas e subtramas. Trama demais é sintoma de quê? Isso mesmo, roteiro mal escrito. Muita coisa acontece a todo momento e o roteiro corre demais durante todo o tempo da projeção, eliminando completamente a amplitude dramática. Algumas das tramas são praticamente desligadas do grande esquema do roteiro e não fariam falta alguma se fossem retiradas, é o caso do arco do Anjo e o da Vampira, o que é profundamente lamentável. A direção de Ratner é incompetente e não consegue atribuir nenhuma amplitude dramática a nenhuma das tramas que tenta desenvolver. O material desta sequência já não é muito bom e o diretor não ajuda, desperdiçando MUITO o potencial do elenco que tinha à mão, quase como se ele estivesse fazendo o filme nas coxas e sem muita paciência para dirigir atores. A prova disso é que temos personagem descaracterizado, peronagem subaproveitado, personagem jogado para debaixo do tapete sem mais nem menos... Porra, cadê o Noturno? Ele foi uma das melhores adições à franquia em X-Men 2, com cenas de ação excelentes e um arco dramático convincente... por quê? E aí colocaram no lugar um Múltiplo (Eric Dane) que não fede nem cheira e um cosplay mal-feito do Fanático (Vinnie Jones). O "confronto final" que dá nome ao título do filme é completamente insosso e sem emoção alguma.

As atuações são o que tornam esse projeto suportável de assistir até o fim. O elenco faz o que pode com o que tem em mãos. Hugh Jackman e Halle Berry estão bem, James Marsden está OK e Famke Jamsen faz o que pode com o péssimo script de Jean Grey/Fênix que ela recebe para atuar. E claro, o carisma e personalidade de Patrick Stewart (Professor Charles Xavier) e Ian McKellen (Erik Lehnsherr/Magneto), que são dois atores tão fodásticos que conseguem ter uma baita presença. Embora o personagem de Magneto seja completamente descaracterizado nesta sequência em uma cena tão ruim que me deu câncer, onde ele deixa uma aliada (Mística) para trás sem mais nem menos, LITERALMENTE após ela salvar sua vida, apenas porque ela perdeu os poderes mutantes, o que é um completo desserviço ao personagem de McKellen. É simplesmente terrível de tão ruim, e a Mística some completamente do filme, aparecendo depois praticamente apenas como uma nota de rodapé muito safada que o filme usa só para dizer que não a esqueceu. Uma boa adição aqui é a personagem da Kitty Pride (da ótima Ellen Page, que havia feito MeninaMá.com e que hoje é um homem transgênero, tendo mudado o nome para Elliot), que faz um bom papel como a Lince Negra.

Aliás, vale destacar um período específico para a Vampira: é inacreditável o potencial desperdiçado da personagem de Anna Paquin durante toda a franquia, que é uma crítica recorrente entre os fãs e a própria atriz sempre se sentiu incomodada. A personagem nunca teve uma agência muito preponderante nos filmes de Singer, mas parece que Brett Ratner odeia de verdade essa personagem. Ela tem todo um dilema pessoal com a questão da cura mutante e o filme pinta isso como algo relevante, mas ela DESAPARECE do filme no terceiro ato e aparece depois de tudo resolvido, apenas como nota de rodapé, ao mesmo estilo da Mística. Eu lamento profundamente que esse tenha sido praticamente a última vez de Vampira no cinema. Paquin fez uma participação em X-Men: Dias de um Futuro Esquecido, que foi cortada da versão que foi para o cinema).

Não tenho mais nada pra dizer, esse filme é uma zona de tão ruim e só não é o pior da franquia original porque "X-Men Origens: Wolverine" existe. 

Nota: 3,0

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Hidden Figures (2016) - RESENHA CRÍTICA

Há filmes que são necessários para que lembremos que a barbárie está mais próxima do que talvez imaginemos ou pensemos, seja através do tempo, do espaço ou até dos dois simultaneamente. Afinal, não é incomum ouvirmos bobagens do tipo "o antirracismo hoje em dia é inútil, os pretos já conquistaram seu espaço". Esta afirmação é completamente estapafúrdia e encontra contestação sem que se precise fazer muito esforço. 

"Hidden Figures", filme de 2016 que comentaremos hoje, foi batizado em terras tupiniquins como "Estrelas Além do Tempo". Péssimo nome, preferi utilizar o original, que traduziria como "Figuras Escondidas". O nome oficial brasileiro da obra é, na pior das hipóteses, incompreensível de tão genérico. Zapear pelo streaming e ver esse nome não te traz nenhuma curiosidade especial a menos que você já tenha ouvido falar sobre o filme (foi o meu caso). O projeto é dirigido por Theodore Melfi e este é provavelmente seu projeto mais bem-sucedido até hoje, com indicações ao Oscar para melhor filme, melhor roteiro adaptado e melhor atriz coadjuvante para a já oscarizada Octavia Spencer. 

O filme acompanha a história de três mulheres que trabalham na NASA durante a corrida armamentista da Guerra Fria entre EUA e União Soviética: a matemática Katherine Goble Johnson (Taraji P. Henson), a Dorothy Vaughan (Octavia Spencer) e Mary Jackson (Janelle Monáe), bem como as dificuldades cotidianas que as três encontram para se encaixar em um ambiente completamente opressivo para pessoas "de cor" (sic). E bom, ao contrário do seu título chinfrim, o filme funciona muito bem em trazer toda a aura da sociedade estadunidense do começo dos anos 1960: ainda segregada racialmente por força de lei em vários estados do país. Está tudo muito bem à mostra. O roteiro do filme acerta ao fazer isso de maneira bem escrachada, mas com boas doses de humor ácido, onde se você ri, é de nervosismo e constrangimento. Gosto também que os roteiristas não apelaram para a fórmula fácil de definir as personagens apenas pela opressão: cada uma tem uma personalidade distinta e bem definida.


A cena inicial em que as protagonistas são abordadas por um policial é tensa na medida em que você geralmente sabe o que acontece quando a polícia aborda pessoas pretas, mas é seguida de uma aliviante quebra de expectativa. Daí em diante, o filme não economiza em jogar na nossa cara como essas personagens são oprimidas e o quanto precisam lutar até mesmo nas mais "simples" tarefas cotidianas. Para além das já conhecidas práticas segregadas de utilizar transportes coletivos ou ambientes públicos de modo geral, precisam andar mais de um canto a outro para fazer coisas como ir ao banheiro, não podem tomar café no mesmo bule que os brancos, precisam trabalhar às cegas com dados parciais que se desatualizam rapidamente e não podem nem assinar relatórios. Isso quando não são confundidas com zeladoras/faxineiras. A composição das cenas faz sempre questão de mostrar o isolamento dessas personagens em um ambiente que a todo tempo faz questão de deixar claro que elas não são bem-vindas, seja no enquadramento de câmera, na disposição dos personagens em certas cenas e até nas cores das roupas. Trabalho primoroso de direção de atores, fotografia e figurino. As cenas em que vemos a protagonista principal correr quase 1km para ir ao banheiro porque não havia banheiros disponíveis para ela no prédio onde trabalhava são cortantes e culminam naquela que provavelmente é a melhor cena do filme.

Tudo isso é viabilizado por um poderoso elenco. Taraji P. Henson emociona demais como Katherine Goble, mostrando uma performance sensível a todas as opressões cortantes sofridas pela personagem, mas com muita força de vontade para fazer aquilo que acha certo até estourar suas emoções. Octavia Spencer é brilhante ao mostrar em Dorothy Vaughan uma personagem preta em posição de poder, mas ainda muito tolhida em relação a seus colegas brancos em posições similares e que faz questão de deixar isso muito claro. Janelle Monáe é muito eficaz como Mary Jackson, pois consegue imprimir toda a gana e vontade de sua personagem em aprender e se tornar uma cientista mais capaz, mas dando de cara com o sistema educacional bastante segregado e um sistema judicial ainda cambaleante em tolher tal segregação (lembremos que as leis federais dos EUA geralmente possuem jurisdição fragmentada nos estados até os dias de hoje). 

O elenco de apoio é também especial e com alguns nomes de peso: Kevin Costner constrói um chefe durão, porém sensível em algum nível às questões raciais e que se mostra um bom mentor para Katherine. Kirsten Dunst e Jim Parsons são muito eficazes como figuras de poder autoritárias e repletas de preconceitos raciais (embora seja difícil não ver a Mary Jane em Dunst e Parsons esteja só reprisando em alguns níveis o Sheldon Cooper de "The Big Bang Theory"), enquanto Mahershala Ali interpreta Jim Johnson como um bom personagem em desconstrução ideológica enquanto serve como par romântico para a protagonista principal. Gosto demais de Aldis Hodge, a composição de seu Levi Jackson, como um personagem que anseia lutar num ativismo direto ao mesmo tempo em que precisa mudar suas próprias concepções ideológicas em relação ao trabalho da esposa.

De resto, acho que preciso comentar a hipocrisia da frase principal que geralmente é entendida deste filme, que é "Nunca deixe de lutar". Convido a todas e todos vocês, meus (poucos) leitores, a uma reflexão crítica. Será que este lema deveria realmente ser o objetivo da população preta? Ora, o objetivo principal deveria ser a criação de um mundo onde os preconceitos de classe/raciais não mais teriam sequer condições de existir, no qual a necessidade de lutar se tornaria, portanto, obsoleta. Ora, a sociedade que até aquele momento melhor representava tais perspectivas de superação do racismo, embora não desprovida de contradições, era justamente a União Soviética e o ideal comunista... que os estadunidenses capitalistas e a NASA - capitalistas - combatiam. O "melhor" comentário que o filme tem a fazer sobre isso é chamar os soviéticos de "canalhas" sem um pingo de ironia sequer pela voz do personagem Al Harrison, de Kevin Costner. 

O preconceito racial prosperou, prospera e prosperará enquanto formos subjugados por um regime baseado na expropriação e na exploração do homem pelo homem.

Ainda assim, "Hidden Figures" é um ótimo filme, com comentário social sólido e importante sobre o racismo de um modo geral e que ganha força pelo seu sólido roteiro, elenco impecável e direção precisa, mas também pelo fato de ser um filme que dificilmente deixará de ser atual a curto prazo.

Nota: 9,0

domingo, 21 de agosto de 2022

Cruella (2021) - RESENHA CRÍTICA


Desde criança, sempre gostei de desenhos da Disney, embora nunca fossem os meus favoritos. Tom & Jerry sempre foi meu carro chefe, seguido do Pica-Pau e dos desenhos da Looney Tunes, especialmente Papa Léguas & Coyote. Dos clássicos Disney, "O Rei Leão" é de longe o meu favorito de sempre, com uma história belíssima cheia de alegorias a maturidade e sobre como devemos assumir as responsabilidades que se apresentam. Nunca vi muito, porém, o desenho "101 Dálmatas" de 1997, do qual se originou o filme que comentarei nesse texto se apresenta, porém vi alguns episódios e de fato era muito divertido ver as aventuras dos cães pintados contra a malvada Cruella de Vil.

O filme do qual falaremos, porém, ensaia jogar um olhar bem mais profundo e interessante sobre esta personagem. Lançado em 2021 e dirigido por Craig Gillespie (também dirigiu o ótimo "Eu, Tonya"), "Cruella" conta a história de Estella (Emma Stone), uma garota de cabelo peculiar e muitos sonhos, mas que come o pão que o diabo amassou no processo de realizá-los e que descobrirá os dissabores do mundo da moda da pior forma, e segredos terríveis sobre si mesma, na qual pouco a pouco se tornará a clássica vilã. A Disney tem acertado em cheio nas repaginações que tem feito de seus vilões, trazendo-os como figuras trágicas e complexas no lugar das abordagens malvadas típicas. E aqui não é diferente. 

A natureza do roteiro de "Cruella" é relativamente simples: trata-se de uma narrativa shakesperiana de tragédia e sucessão hereditária de poder, o que não deixa de ter seu aspecto de clichê. Mas o filme é escrito de uma forma que o espectador desavisado acaba não percebendo até que a revelação principal aconteça, e ela é impactante. Um jogo de gato e rato no qual a protagonista vai cada vez mais submetendo a antagonista Baronesa (Emma Thompson) a sucessivos constrangimentos e deixando claro que o reinado da rival no mundo da moda está prestes a colapsar. 

Falando em moda, é difícil assistir a este projeto e não ficar encantado/deslumbrado com a parte de figurino. O filme é quase inteiro um desfile de moda, pois os momentos mais impactantes quase todos giram em torno de figurinos espalhafatosos belíssimos e apaixonantes, criados pela figurinista britânica Jenny Beavan. A parte visual do filme é também muito boa, com a fotografia retratando uma Londres pitoresca e em um processo de transformação urbana quase tão marcado quanto os maravilhosos figurinos de Beavan, com certo contraste entre a arquitetura clássica e a arquitetura mais contemporânea da segunda metade do século XX.

O filme explora de maneira muito contundente a relação opressiva entre a Baronesa e suas designers do ateliê de moda, na qual ela extrai e expropria completamente os resultados do árduo trabalho dos designers, os tratando sempre como ativos dispensáveis, o que vai deixando o espectador com cada vez mais abuso dela e consequentemente mais simpáticos à ação sabotadora de Estella/Cruella. Há toda uma construção de perfil narcisista e capitalista selvagem da personagem de Thompson que funciona muito bem tanto para efeitos dramáticos inerentes ao próprio filme, quanto para leituras críticas externas a ele. Afinal, se você trabalhou no setor de criação de uma empresa, sabe muito bem que o que você cria no âmbito do trabalho não é seu, e sim pertence a quem paga seu salário, que provavelmente usará sua criação para gerar valor e mais valor para ele próprio.

Gosto que este filme consegue reproduzir uma atmosfera cômica similar às animações sem necessariamente tentar apelar para aspectos que fatalmente fariam o projeto parecer muito caricato, como vários live-actions dos anos 1990 (tipo "O Máskara" ou "Uma Cilada para Roger Rabbit") fizeram ao incluir efeitos especiais e sonoros de desenhos. Em vez disso, aposta-se muito na comédia ácida e na direção dos atores para extrair algo leve e ao mesmo tempo emocional e sensível. Contudo, a direção às vezes parece passar por uma confusão tonal, ao passo que parece não ter tanta clareza naquilo que quer passar. Trama adulta? Comédia? Caricatura? O filme transita por essas três searas, nem sempre da melhor maneira.

Por falar em atores, o elenco dá um show. As já citadas Emma Stone e Emma Thompson são a dupla principal e estão irretocáveis. Stone consegue fazer sua Cruella ser muito identificável em quase todos os aspectos, desde a moça desajeitada e socialmente desfavorecida até a predadora amante da moda que ela se torna, mas sem tentar justificar suas atitudes mais vilanescas. Já Thompson atribui à Baronesa um efetivo poderoso ar de superioridade, com todos os já citados tiques de narcisismo e de empresária bilionária (bilionário tem que se foder, lembremos) que realmente funcionam muito bem. O elenco de apoio também funciona muito bem, Joel Fry e Paul Walter Hauser fazem a icônica dupla Horace e Jasper, e conseguem atribuir a esses dois personagens toda a aura de capangas atrapalhados divertidos que tinham na animação, mas também acrescenta uma personalidade questionadora aos dois, ao passo em que presenciam as crescentes contradições da protagonista. Temos também as boas presenças de John McCrea, Kirby Howell-Baptiste e do sempre confiável Mark Strong (de "Sherlock Holmes" e "Shazam").

Ao final da exibição, "Cruella" é um filme divertidíssimo e envolvente em vários aspectos, que se por um lado é por vezes confuso no tom desejado (às vezes muito adulto para ser Disney ou muito Disney para ser adulto e os dois tons nem sempre conversam muito bem) e com certeza clichê em alguns momentos (a narrativa é derivativa, embora se venda como original) por outro lado como pontos altos o visual estonteante do figurino e a atuação da dupla principal. Vale a pena? Com certeza.

Nota: 8,5

sexta-feira, 29 de julho de 2022

O canto do cisne de Vettel

Há cerca de três anos, escrevi um texto para este blog, chamado "Sobre o possível canto do cisne de Vettel", onde especulava sobre uma possível aposentadoria de Sebastian Vettel da Fórmula 1 na época, no já distante ano de 2019.

Aquele texto era melancólico, em uma época melancólica para fãs de Vettel, eu incluso.

Este, ao contrário, será para CELEBRAR Vettel, como um dos melhores seres humanos que já passaram por este esporte que tanto nos maltrata, mas que tanto amamos.

Sua aposentadoria não exatamente me pegou de surpresa. Mas com certeza me deixou um pouco melancólico na hora. 

Sou daqueles que desejavam Vettel de volta a uma briga por título, pois sei que ele se daria muito, muito bem.

O desapego do piloto às redes sociais era algo louvável. Um cara à moda antiga, de fato. Daí ele criou um Instagram, só para anunciar a aposentadoria, para evitar boatos, disse-me-disse, cochichos.

Papo reto. Dele para seus fãs e público geral. Sem mediação de imprensa.

Desconheço piloto nesse grid com maior respeito pelos fãs. Talvez o único que chegue perto hoje em dia é Hamilton.

Não é mistério para ninguém que considero Vettel meu piloto favorito dos que competem atualmente. E um dos meus três favoritos de sempre, junto de Hamilton e Michael Schumacher.

Hoje em dia, não vive mais seu auge e com certeza já teve uma fase bem mais próspera no automobilismo, por uma série de fatores que nem cabe elencar neste momento.

Acompanhei a carreira de Vettel na Fórmula 1 com entusiasmo, embora inicialmente eu tenha olhado meio torto para o alemão. 

Coisa de adolescente, eu tinha lá meus 14-15 anos quando Vettel começou de fato a disputar títulos na Fórmula 1, e sinceramente tinha uma certa mania de virar casaca. Coisa de adolescente dodói.

Mas uma vez Vettel campeão, nasceu em mim uma admiração e um gosto por Seb que não pararam desde então. 2010 foi um divisor de águas para mim enquanto torcedor por uma série de fatores.

Era uma satisfação imensa ver cada vitória, cada pole, cada momento grandioso em que Vettel reescrevia a história da Fórmula 1, amealhando quase todos os recordes de precocidade possíveis. 

Muitos dos quais foram mantidos até hoje, inclusive.

O domínio se sucedeu, e Vettel foi conquistando cada vez mais vitórias e enfileirando títulos - foram quatro, no total.

52 vitórias, 56 poles, 122 pódios. Fechará a carreira com 300 GPs disputados, número fechado.

Terceiro maior vencedor da história.

Quarta maior marca de poles.

Maior quantidade de vitórias em sequência da história da Fórmula 1 - nove. 

Divide com Alain Prost a marca de quatro títulos, ficando atrás apenas de Fangio, Hamilton e Schumacher.

Enfim, uma porrada de feitos fodas pra caralho que eu deixo para vocês pesquisarem o resto na Wikipedia porque ninguém veio ler essa caceta pra ficar lendo estatística.

Afirmava na época, afirmo agora:

Sebastian Vettel foi, durante seu auge, o melhor piloto da Fórmula 1. 

Sem meios termos, sem beabá de "Ah, tal piloto era melhor mas não tinha carro" ou qualquer merda dessas.

Era o melhor. Ponto. 

Hamilton, Alonso, Raikkonen etc, 

TODOS comiam poeira. 

TODOS.

Não sei se alguém lembrará, mas teve um dia histórico nesses anos de domínio do alemão.

GP de Singapura 2013, sessão classificatória.

No Q3, Vettel foi o primeiro a fazer uma volta lançada, faltando mais de cinco minutos para acabar o tempo da sessão.

Voltou para os boxes. Por lá esperou o resultado. Ninguém superou o tempo. Confirmou a pole-position nos boxes, já fora do carro.

Não me lembro de nenhum piloto na era atual da F1 ter feito isso. 

Nem Hamilton na toda-poderosa Mercedes nos anos seguintes fez algo remotamente parecido.

"Ah mas o carro-" DANE-SE.

Mark Webber não fazia o que Vettel fazia com os carros projetados por Adrian Newey. Quem se atreve a dizer que Mark Webber era mau piloto?

Limpa a boca antes de falar "ah mas o carro". O cara ganhou de Toro Rosso sob dilúvio. Pole e vitória. Com autoridade. Estilo Senna no GP de Portugal de 1985. 

Hoje, Vettel vive o crepúsculo de sua laureada carreira. Muito amado por alguns, especialmente por sua apaixonada torcida. 

Odiado por outros tantos, fomentados pela falsa ideia de que Seb não era tão bom assim e também por todo o mar reacionário que é a Fórmula 1 e seus fãs de um modo geral.

Pois hoje, aos 35 anos e já muito mais maduro do que outrora, o alemão entende seu lugar no mundo. 

O lugar de alguém que, muito mais do que um piloto de corridas, é um ser humano imbuído da nobre motivação de tentar tornar o mundo um lugar melhor.

Do ponto de vista de um comunista (meu caso), ele pode até não entender de fato as reais causas dos problemas climáticos, bem como os problemas da população pobre e das minorias, pois sua atuação se dá de maneira ainda muito incipiente, considerando o que realmente seria necessário para resolver tais problemas (mas até aí, nem Lewis Hamilton, outro contumaz defensor de causas sociais, entende de fato, então tá tudo certo).

Mas tenho certeza de que ele se esforça ao máximo para, da sua posição, ser uma pessoa melhor e tornar o mundo um pouco melhor para outras pessoas. 

Tomou dianteira junto com Hamilton nos protestos de antirracismo de 2020. Hoje é um ferrenho defensor da causa ambiental.

Vettel é um brilhante piloto, e um ser humano melhor ainda. Isso ninguém tira dele. 

Ou de nós, que acompanhamos sua carreira com tanto carinho. por todos esses anos.

Obrigado, Sebastian Vettel. Por tudo.




Afinal, qual é a de Lance Stroll?

 Acompanho relativamente de perto a carreira de Lance Stroll na Fórmula 1 desde 2017, e sinceramente, já estava há alguns anos matutando a ideia de escrever um texto a respeito. Não o fiz antes porque hoje em dia a Fórmula 1 não ocupa mais do meu tempo e foco do que deve, ou seja: assisto umas corrida, falo umas groselha no twitter com a galera e é isso. 

O típico mauricinho

A princípio: Stroll é filho de bilionário, é usufrutuário deste fato e bilionário tem mais é que se foder. Ponto. 

Para ser sincero, nunca fui com a cara dele. Parece alguém de fácil convívio, e um cara bacana para se tomar umas breja, se você desligar um pouco o cérebro e pensar mais superficialmente.

O canadense é bem diferente de figuras bufonas como Nikita Mazepin, que parecem não ter real interesse em aprender com quem sabe do riscado e acham que são deuses na terra porque estão pagando pela aventura, ou de Nicholas Latifi, que parece mais um gentleman driver do que qualquer outra coisa. Stroll tem algum nível de sportsmanship, por menor que seja, e parece querer traçar um caminho bem-delineado no esporte rumo aos louros.

Mas a aura dele não bate com a minha de jeito nenhum, tem um aspecto todo "pay-driver" intrínseco à sua trajetória, embora esta não seja muito convencional para pay-drivers. 

E me parece que, para além do desempenho medíocre, Stroll não é o tipo de figura que move paixões, levanta torcidas ou tem muito apelo na mídia. É um daqueles típicos pilotos meia-boca que, se não fosse pelas circunstâncias únicas que permeiam sua carreira, já estaria fora da Fórmula 1 faz tempo.

Aqui uma ressalva: "pay-driver" não é uma definição que se basta em si mesma. Outros pilotos pagantes já fizeram/fazem boas carreiras na F1. É o caso, por exemplo, de Sergio Pérez, que começou bancado pelo bilionário Carlos Slim e hoje é piloto da Red Bull. 

Para começar, quase todo o caminho de Lance nas categorias de base foi marcado por presepadas, seja acidentes de pista ou controvérsias de bastidores, o pai praticamente comprando a estrutura de uma escuderia inteira (no caso, a Prema, que hoje é uma potência no automobilismo de base), ou falcatruas envolvendo companheiros de equipe que facilitavam para ele. Apesar disso (ou talvez por causa disso, você decide) Stroll foi campeão da Fórmula 4 Italiana e da Fórmula 3 Europeia.

O canadense chegou na Fórmula 1 com um aporte financeiro gigantesco do papai.

Lawrence Stroll, pai de Lance, enfiou uma burra de dinheiro na Williams (time de estreia do moleque), botou o garoto pra andar com carros alugados em pistas particulares, ganhar quilometragem a dar com com o pau, enfim, fez a porra toda pra ver se o filho ao menos não passava vergonha.

Todas as informações acima podem ser encontradas com mais detalhes neste texto AQUI, do excelente blog Bandeira Verde.

De lá pra cá, vamos ser honestos, Stroll nunca, NUNCA impressionou ninguém. À parte de uma pole-position improvável no GP da Turquia de 2020 e de três pódios circunstanciais (dependentes de fatores externos extraordinários), nunca fez grandes resultados e ficou atrás de quase todos os companheiros de equipe que teve em suas temporadas disputadas. 

Uma rápida passada de olho numa tabelinha, para propósitos comparativos, a quantidade de pontos de Stroll e a de seus companheiros de equipe nas respectivas temporadas:

2017 & 2018 - Williams:

Lance Stroll 40 x 43 Felipe Massa

Lance Stroll 6 x 1 Sergey Sirotkin

2019 & 2020 - Racing Point

Lance Stroll 21 x 52 Sergio Pérez

Lance Stroll 75 x 125 Sergio Pérez

2021 & 2022 - Aston Martin:

Lance Stroll 34 x 43 Sebastian Vettel

Lance Stroll 4 x 15 Sebastian Vettel

É bem verdade que em quase todos esses anos, o canadense lutou contra pilotos bem mais experientes, mas não me parece ter aprendido muitas coisas ou evoluído de 2017 para cá. Causava acidentes bizarros naquela época, causa hoje. 

A curva de aprendizado de Stroll é uma montanha russa. Quando parece que vai, não vai. Quando parece que não vai... aí é que não vai mesmo. 

Neste ano, ainda se viu sendo superado em ritmo de classificação no Bahrein por Nico Hulkenberg, que nunca tinha sequer sentado no carro e que substituiu Vettel (na ocasião, com Covid-19). Naquela ocasião, Hulkenberg tinha passado algo em torno de um ano e meio sem pilotar um F1.

O episódio constrangedor rendeu críticas de Ralf Schumacher: "quando alguém que não guia há um ano e meio, entra e é três décimos mais rápido do que você imediatamente, deve-se pensar muito bem se está fazendo tudo bem".


Bateu com Latifi em 2022 na Austrália,
de jeito bem parecido

Em 2017, bateu com Vettel na Malásia
 após a bandeirada







Stroll está no curso de sua sexta temporada completa e, sejamos francos, ele ainda parece um novato, continua tendo desempenhos fracos diante de companheiros de equipe e mesmo quando teve um bom carro nas mãos, nunca saiu do mediano.

 Acredito, por exemplo, que já esteja mais do que evidente que Lance não está no páreo dos melhores de sua geração.

Enquanto nomes como Max Verstappen, Charles Leclerc, Lando Norris e George Russell (que são da mesma faixa etária) já são estrelas do esporte e comprovadamente talentosos, a cada ano que passa fica mais claro de qual material o canadense é feito, e certamente não é o de um campeão.

É curioso, também, ver a disparidade entre a trajetória do canadense nas bases e a que constrói no certame máximo: se numa Fórmula 3 da vida parece suave um papai de açúcar comprar um time e forçar companheiros de equipe a serem bonecos de mamulengo para fazer o filho parecer fodão, na Fórmula 1 nada disso parece muito fácil. E acredito que estejamos vendo isso na prática.

(Até porque na Fórmula 1 não dá pra obrigar um Sergio Pérez ou um Sebastian Vettel a fazer as vezes de escudeiro que Nick Cassidy ou Maximilian Gunther faziam na Fórmula 3, risos)

É mais do que óbvio também que, assim como Mazepin, ninguém na Fórmula 1 realmente engole Stroll a não ser pelas quantidades exorbitantes de dinheiro que seu pai investe nos times pelos quais passa. 

O canadense parece ter trânsito melhor no certame e certamente tem um pouco mais de talento do que o russo. Mas sejamos francos... 

Num páreo com Nick de Vries, Oscar Piastri, Felipe Drugovich e outros talentos jovens BABANDO por uma vaga, alguém duvida de quem realmente sairia da Aston Martin, caso Vettel não se aposentasse e, principalmente, Lance Stroll não tivesse cadeira cativa?

De onde você menos espera... é daí mesmo que não vem merda nenhuma.

domingo, 22 de maio de 2022

"De volta ao baile" (2022) - RESENHA CRÍTICA


Este que vos escreve deve ter sido acometido por alguma anomalia mortal para estar escrevendo sobre a segunda comédia romântica assistida em menos de um mês. Mas como a digníssima decidiu meio que de supetão e eu consegui me envolver parcialmente com o projeto, acabei decidindo assistir até o fim e escrever alguma coisa aqui. Como já dito anteriormente, comédia romântica obviamente não é meu estilo favorito, mas acho que se vale uma experiência diferente junto com a cremosa, por que não? Até porque já a fiz ver Matrix e Harry Potter inteiros, então tudo certo.

"De volta ao baile" foi lançado recentemente no serviço de streaming da Netflix e estrela Rebel Wilson, Sam Richardson, Zoe Chao e mais uma ruma de serumaninhos de quem eu nunca ouvi falar antes e provavelmente nunca ouvirei de novo (Alicia Silverstone faz uma ponta aqui, porém). Aqui temos um daqueles casos clássicos de filmes que a crítica especializada tem detonado, mas que encontrou muito calor afetuoso entre o público, especialmente a geração millenial, através de um forte teor nostálgico. Na trama, Rebel Wilson interpreta Stephanie Conway, uma garota colegial de 17 anos que quer muito ser popular na escola a todo custo, se envolver com o pessoal descolado, conquistar o cara mais gostoso do pedaço e desbancar a rival. Porém, a garota sofre um terrível acidente durante uma apresentação de torcida, fica em coma por vinte anos e, ao acordar, se depara com um mundo bem diferente dos anos 2000, no qual ela terá de lutar para se ajustar, tendo a mente de 17 anos em um corpo de 37.

Tendo a concordar com a crítica em alguns aspectos, mas não achei este filme horrível. Tem um valor de produção aceitável para o padrões de um original Netflix e alguns momentos inspirados na fotografia e na trilha sonora. O humor funciona bem em alguns momentos, com gags bem divertidas, principalmente para quem manja das referências dos anos 90 e 2000. Também tem um pouco de "American Pie" durante quase toda a duração, com gags sexuais nada tímidas. Mas não é tão bem atuado e com certeza sua narrativa é extremamente derivativa, seja pela premissa, pela crítica social foda embutida ou o enredo no estilo "garota luta para ser popular" que, vamos combinar, já é mais velho do que a posição de cagar. Isso já foi bem melhor explorado em outras produções do mesmo gênero. Ainda assim, acho que o roteiro conseguiu me fazer simpatizar com o drama da protagonista ao menos o suficiente para eu me importar e continuar assistindo até o fim, graças ao teor dramático inevitável em volta do acidente. Nesse sentido, o começo o filme me passou uma vibe meio "Austin Powers", devido ao choque geracional e cultural que a personagem inicialmente sentiu, mas isso não durou muito tempo: antes da metade ela já estava totalmente integrada ao ambiente online. O problema é que o projeto exige muito da sua suspensão da descrença ao mostrar essa mulher com quase quarenta anos voltando ao ensino médio e isso acontece sem muita contestação. Parece forçado, como boa parte das coisas que vão acontecendo a partir disso também, o filme vai só acumulando absurdos, cabendo ao espectador só calar a boca e ir aceitando as coisas uma atrás da outra.

Acho que o maior problema para mim foi a forma como o projeto trata as gerações mais recentes em contraponto ao ideário noventista representado pela protagonista. Nada aqui parece muito sincero, o longa simplesmente pegou paródias e estereótipos do que seriam minorias sociais falando sobre problematizações, politicamente correto e afins e saiu jogando um atrás do outro na sua fuça como se fossem uma síntese do que teria virado a sociedade atual (na cabeça dos realizadores, pelo menos). O problema ululantemente óbvio nisso é que só parece algo que não entende realmente as gerações atuais, seus aspectos, necessidades e afins e só jogou dessa forma para fazer toda a crítica social foda sobre como as pessoas ficaram bitoladas em redes sociais, seguidores, fama e falsas interações sociais enquanto desprezam as pessoas que realmente se preocupam com elas... e por algum motivo essa premissa ainda é utilizada nos filmes por aí. Quem escreveu esse roteiro definitivamente não sabe como os jovens realmente funcionam. É o segundo filme este ano que vejo com essa trama de fundo, o primeiro foi o longa tupiniquim "Carnaval" (também lançado este ano, e de qualidade bem duvidosa, se você quiser a minha opinião).

E é isso, "De volta ao baile" passa longe de ser um desastre e definitivamente sabe qual o público a quem quer agradar, conseguindo muito êxito ao explorar a nostalgia, sendo um ótimo "Sessão da Tarde". Nada muito além. Se estiver procurando um passatempo nostálgico, a diversão é garantida.

Nota: 5,5



sábado, 21 de maio de 2022

"ILHA DOS HOMENS PEIXE" é realmente um dos piores arcos de One Piece

Sou fã de One Piece há praticamente dez anos. Não sou o consumidor mais ativo da franquia e nem o mais fiel, mas gosto bastante, tenho uns bonecos, comprei alguns mangás (dei a maior parte mas fiquei com o volume 1) e tive uma época onde maratonei o desenho e o quadrinho até mais ou menos o arco de Marineford e a reunião dos piratas após o Time-Skip. Depois disso, me cansei e fui procurar consumir outras coisas. A história estava ficando cada vez melhor e de fato ela evoluiu muito desde então, elevando a escala dos acontecimentos sempre mais, se aproveitando de uma ótima construção de mundo e um roteiro, na maior parte do tempo, muito bem estruturado, que permite que o autor, Eiichiro Oda, consiga criar novos elementos e reaproveitar personagens antigos de uma forma que quase nunca pareça forçada. Há problemáticas envolvidas na fórmula empregada pelo quadrinista nipônico, sendo a mais recorrente o fato de quase nenhum personagem ser morto fora de flashbacks (mesmo quando em alguns contextos a morte seria a consequência mais lógica possível como desdobramento para um acontecimento dramático) mas, em geral, Oda se sai muito bem no desenvolvimento de sua história.

Daí, neste ano, resolvi que iria voltar a ver o desenho de onde parei. Fiz uma pequena recapitulação ao assistir resumos das primeiras sagas, pois havia esquecido muitas coisas, e assisti ao arco de Impel Down e Marineford para me contextualizar. Passei pelo flashback familiar de Luffy, Ace e Sabo (que é divertido e prepara terreno para o futuro ao mesmo tempo em que contextualiza o passado dos irmãos) e a reunião dos piratas em Sabaody, que é morna, mas tem sua cota de diversão pela piada do Luffy falso. Finalmente eu estava pronto para continuar a viagem ao Novo Mundo que tanto foi antecipada.

Aí veio o arco da Ilha dos Homens-Peixe (também conhecido como "Ilha dos Tritões"... e tudo foi por água abaixo. Mas antes de começar a cagar na cabeça dessa história, cabe um contexto. Muitas sagas de One Piece são pura e simples encheção de linguiça, eu consigo digerir isso muito bem. Mas é incrível como esta aqui consegue reunir o que há de pior em narrativa. A premissa era excelente, o tema do racismo estava lá o tempo todo, com a quase sempre estremecida relação entre humanos e tritões. Esta claramente tinha potencial para ser um excelente saga.

O que encontramos aqui, porém, é um comercial de brinquedos que dura aproximadamente quarenta e poucos episódios. Eu não estou brincando, tem episódios em que, no meio de uma guerra contra cem mil pessoas (num dos exercícios de exposição mais safados que já vi, não tinha 100 mil pessoas ali nem fodendo), eles literalmente param o ritmo para mostrar Franky apresentando as novas armas do navio dos chapéus de palha, Thousand Sunny. É ver para crer. É divertido de ver, você até tem, momentaneamente, vontade de gritar empolgado com os personagens sobre como aquilo é foda, mas não tem uma função narrativa que não seja mostrar os novos brinquedos da coleção da Bandai.

Não há evolução dramática para os protagonistas, eles não enfrentam grandes dificuldades e o roteiro dá a entender o tempo todo que eles poderiam derrotar os inimigos a qualquer momento se quisessem, sendo boa parte dos episódios uma propaganda gigante para mostrar os novos visuais dos personagens e a evolução de seus poderes, que é de fato impressionante se comparada ao pré-timeskip. Um exemplo disso é que o tempo todo é estabelecido, através de diálogos e acontecimentos, que humanos são muito inferiores aos tritões em um combate na água. O que acontece aqui? Zoro luta contra Hody Jones na água e vence, deixando o tritão com um baita de um corte no peito, um ferimento que o incomoda em alguns momentos durante a sequência. E estamos falando de Zoro, aquele que, até então, é o segundo no comando dos Chapéus de Palha, colocando em dificuldades o vilão que seria o grande pivô do arco e que seria o obstáculo principal do próprio Luffy.

Para contornar isso, o roteiro simplesmente vai criando obstáculos artificiais e que não se sustentam por seus próprios méritos, ou fazendo os personagens tomarem decisões absurdamente idiotas que deixam os vilões em vantagem. Querem um exemplo? Luffy indo para a água para confrontar Jones na hora em que a arca gigante Noah está para atingir a ilha. Jinbe estava ali DO LADO, disposto a lutar contra a trupe de Hody, sendo a escolha óbvia para lidar com aquela situação, por ser o mais poderoso tritão em combate. Mas por que Luffy foi? Porque é o protagonista e porque o desenho precisa vender bonecos do personagem dando golpes especiais novos aprendidos no treinamento. É impressionante como essea história  vende um climax falso e uma tensão não conquistada. 

É difícil levar a sério como antagonista um vilão que claramente não tem a menor condição de impor grandes riscos aos protagonistas, e portanto não há muito pelo qual se temer, tornando a história incapaz de capturar a tensão do espectador/leitor. Se a periculosidade de Hody Jones já não é das maiores, como personagem ele não é muito melhor: apenas um pastiche do que já foi feito melhor antes (no caso, Arlong). Ele não tem ideais próprios, não tem nenhuma característica redimível e todo o desenvolvimento dele gira em torno de uma mentira. E o uso das tais drogas energéticas não tem consequência nenhuma, servindo apenas como Power-Up gratuito safado para fazer o vilão parecer mais difícil de derrotar do que parece.

Acham que acabou? Tolinhos... eu tô só começando.

Não sei ainda como estão os outros arcos neste aspecto, mas a Ilha dos Homens-Peixe pega a sexualização das personagens femininas e leva a um outro nível, produzindo quase sempre alguma piada envolvendo a tensão sexual. Temos aqui decotes enormes sempre em evidência e mostrados em planos fechados até mesmo em situações que são projetadas para serem tensas, o que quebra todo o ritmo. Há até um miniarco dramático envolvendo a perversão sexual de Sanji, que chega a quase morrer devido ao sangramento nasal (que é o substituto da ereção nos desenhos japoneses) e isso demanda uma transfusão de sangue desnecessariamente complicada, o que até serve para tocar superficialmente no ponto do preconceito existente entre tritões e humanos, mas não vai muito além. 

Temos também aquela que talvez seja a personagem mais problemática de One Piece: a Princesa Shirahoshi. Também conhecida como uma das personagens mais chatas do desenho. Se essa menina existisse, ela resolveria todos os problemas hídricos do Ceará, encheria todos os açudes e acabaria com os problemas de seca que o estado enfrenta durante as estiagens de fim de ano. Quase tudo o que acontece faz essa garota chorar feito um bebezão. Felizmente, Oda parece saber disso e logo faz de Luffy a expressão mais sincera e franca do próprio público, fazendo o capitão dos Chapéus de Palha falar na lata: "você é grande, mas é covarde e uma bebê chorona, eu não gosto de você". Ao mesmo tempo, o roteiro tenta redimir a personagem durante os momentos difíceis, fazendo ela ter alguma agência no clímax, e ela se prova menos medrosa e chorona no final, mas até ali você já tem raiva estabelecida em relação a personagem, e uma raiva bem justificável, por sinal. 

E como se não fosse suficiente, a personagem tem uma codificação estética audiovisual cheia de pedofilia embutida (eu sei que vozes agudas em mulheres são uma constante nos desenhos japoneses, mas a de Shirahoshi abusa) e parte do arco dramático dela se desenvolve devido às ameaças do vilão secundário do arco, Vander Decken. Esse personagem é completamente imbecil e estraga completamente o que seria o capitão do lendário Holandês Voador, no que talvez seja uma da maiores oportunidades perdidas na história. E para completar essa montanha de merda com uma cereja de bosta, um dos flashbacks deixa muito, muito claro que a relação não correspondida entre Decken e Shirahoshi se dá em meio a uma conotação cheia de pedofilia, com o vilão se "apaixonando" pela princesa quando esta ainda era uma criança e a perseguindo violentamente até a idade adulta, o que fez com que ela fosse trancada em uma torre por dez anos. É uma das piores coisas que eu já li, tira de Shirahoshi qualquer possibilidade de agência própria e só faz com que ela seja a donzela em perigo durante a maior parte da saga. Shirahoshi é uma péssima personagem e está perigosamente perto de ser um material de regozijo para pedófilos, seja pelo seu visual e maneirismos ou pela forma como é assediada desde criança. Ao menos o quadrinista não dá a Decken nenhuma característica redimível, é um personagem nojento a quem devemos odiar e ponto. Felizmente isso o roteiro consegue com louvor.

A única coisa que eu poderia chamar de positiva neste arco é o flashback com Fisher Tiger e a Rainha Otohime, que são objetivamente bons personagens que delineiam dois arquétipos: a heroína virtuosa que acredita no bem das pessoas até o fim, e o herói trágico, porém bem intencionado, que é durão, mas possui honra e determinação implacáveis. O arco também mostra um jovem Arlong antes dos eventos da saga Arlong Park, nos quais ele oprime completamente a Vila Cocoyasi, terra natal de Nami, além de bons desenvolvimentos de personagens como Jinbe e Hachi, aparições de personagens conhecidos e a introdução de outros que veremos no futuro.

No fim, Ilha dos Homens-Peixe é uma bosta. Não tem meias palavras, é ruim, bizarro, mal escrito, desnecessariamente longo, atua como comercial de brinquedos em boa parte do tempo e só atrasa a ida dos Chapéus de Palha ao Novo Mundo. Não tem consistência narrativa, não consegue aproveitar direito a boa premissa que cria e ainda tem elementos problemáticos incômodos pra caralho.

Felizmente já me alertaram que alguns arcos posteriores são bem melhores. Que sejam.

domingo, 8 de maio de 2022

LEGALMENTE LOIRA (2001) - RESENHA CRÍTICA



Não sou o maior fã de comédias românticas. Acho que o gênero teve seu auge nos anos 1990, mas desde os anos 2000 é um tipo de filme cansado e previsível, com tramas manjadas, batidas de roteiro muito fáceis de antecipar e estereótipos já super conhecidos do público que geralmente assiste estes filmes, então não é muito difícil imaginar o motivo de este gênero ter entrado em uma espécie de geladeira em Hollywood, com cada vez menos produções financeiramente bem-sucedidas: o olhar do público já não tem sido mais o mesmo desde então. Naturalmente, há outros fatores que podem explicar muito bem esse declínio: conflito geracional, ascensão de outros gêneros (notoriamente, o mais avassalador foi o de super-heróis) e, como já citado no começo, o esgotamento da fórmula. 

E nesse cenário, não acho que se possa dizer que "Legalmente Loira" tenha quebrado tanto a risca da comédia romântica, e em muitos aspectos ele continua sendo um reflexo de seu tempo. Não sei se seria o tipo de longa que eu tomaria espontaneamente a decisão de ver, mas não posso me dizer arrependido por isso. Embora ele não possa exatamente se encaixar no conceito de crítica social foda, acredito que este projeto é um pouquinho mais esperto do que parece à primeira vista. Lançado em 2001 e dirigido por Robert Luketic (que estava em seu segundo trabalho, mas este acabou sendo seu maior sucesso de bilheteria) e estrela Reese Witherspoon, Luke Wilson, Selma Blair, Matthew Davis e Victor Garber. Tem também algumas participações especiais, como Ali Larter (de "Resident Evil" e "Premonição"), Jennifer Coolidge (a Mãe do Stifler em "American Pie") e Linda Cardeline (a Velma de "Scooby Doo"). 

Por que eu asssiti a esse filme, então, vocês me perguntam? Porque minha namorada pediu, e na nossa relação, sou eu quem dá a última palavra: "sim, senhora".

A trama é a seguinte: Witherspoon é Elle Woods, a típica patricinha bonita, loira e rica de quem não se espera mais do que o batido estereótipo da gostosa burra, e que tem um namorado rico e bonito, de quem ela espera um pedido de casamento. Só que logo descobrimos que ele é um tremendo babaca: ele a larga no dia em que ela esperava o pedido e isso a deixa totalmente frustrada. Porém, motivada a reconquistá-lo (bem na vibe "A Pequena Sereia"), a loira decide entrar na Universidade de Direito de Harvard, onde o rapaz vai estudar, para impressioná-lo. O projeto começa bem nessa vibe de comédia de patricinha fútil, o que é uma preparação que não deixa de ser curiosa, considerando o desenvolvimento da trama, no qual vamos descobrindo que nem tudo é o que parece e que os estereótipos podem ser enganosos.

A direção de Luketic aqui é funcional, ele não é conhecido exatamente pela autoralidade, mas funciona. Ele consegue fazer a trama funcionar e tem alguns enquadramentos até criativos. Tem uma certa cena que eu achei muito interessante, na qual a protagonista entra no ambiente da faculdade e o diretor usa um plano holandês para indicar meio que vertigem e desorientação. Ela é uma estranha no ninho e o filme está bem ciente disso. A todo o tempo somos lembrados de que ela é como um peixe fora d'água e que aquele lugar inicialmente está pronto para regurgitá-la a qualquer momento, e isso é traduzido tanto nos diálogos quanto nos visuais, com ela quase sempre destoando muito do ambiente.

O roteiro, porém, não é muito mais do que previsível. Você sabe tudo o que vai acontecer desde o começo, o filme não faz questão de furar a bolha da comédia romântica e... tá tudo bem. Não é como se o público-alvo comum desse projeto se interessasse por filmes-conceitão, então, aposta-se no seguro: com poucos minutos somos apresentados à protagonista, suas amigas e ao conflito que vai nortear o desenvolvimento da trama, o que não deixa de ser algo bem ágil, então podemos dar pontos ao roteiro por ser honesto o suficiente. O humor, porém, funciona: temos piadas com bom timing cômico.

As atuações são OK, ninguém aqui está atrás de Oscar. A que mais se destaca é evidentemente Reese Witherspoon, com todo o seu charme e carisma. É uma atriz que inclusive ganhou estatueta do carecão pelado alguns anos depois, e aqui ela entrega uma personagem que, se parece boba à primeira vista, acaba apresentando outras dimensões com o passar da trama. Não é particularmente bem escrita, mas funciona bem. O arco dramático dela está todo desenvolvido em torno da famosa quebra do estereótipo da loira burra e isso o filme faz muito bem, Witherspoon consegue convencer como a "loira burra" que de burra não tem nada. E no clímax do terceiro ato, ela consegue se sobressair sendo exatamente a pessoa que era antes de entrar na faculdade, o que funciona também como certo aspecto do humor presente na obra. 

Acho que se tem algo mais a se destacar sobre o projeto, é a forma como ele envelheceu: há pessoas hoje em dia que veem certo panfleto feminista na forma como "Legalmente Loira" conta a história de sua protagonista, pondo como justificativa exatamente a ideia da quebra de estereótipo que discutimos aqui. Você pode, ainda, falar sobre o machismo presente no ambiente de trabalho, que se traduz na forma de assédio sexual contra a protagonista por Callahan (Victor Garber), seu professor, bem como a relação de Elle Woods com Vivian, a personagem de Selma Blair, que começa como uma disputa das duas pelo babaca ex-namorado de Elle (que virou noivo de Vivian) mas gradativamente se transforma numa genuína amizade entre elas duas, o que parece ser um bom comentário sobre como mulheres não deveriam ser inimigas entre si. 

Só que, a meu ver, isso não vai tão além, por decisões do próprio filme, que, lembrando, é uma comédia romântica. A personagem de Witherspoon não é uma mulher pobre ou necessitada que come o pão que o diabo amassou em um ambiente de convivência opressor e completamente resistente a ela. Ela é branca, loira, rica (falem sério, ela dirige um Porsche Boxster boladão, não é como se ela tivesse realmente alguma dificuldade na vida) e decide cursar Harvard por puro capricho (por causa de macho, lembrando). E que, a qualquer momento, poderia simplesmente sair dali e voltar a fazer o que fazia antes. Poderia ter algum tipo de crítica social foda aqui? Talvez, e tem elementos que deixam o filme bem suscetível a essas interpretações, mas é o tipo da coisa que foi feito melhor em outros filmes, alguns até do mesmo gênero. Acho que o meu recado está dado: se há feminismo neste filme, ele é muito superficial e não serve muito mais do que ao desenvolvimento da própria protagonista. 

E assim, "Legalmente Loira" não é muito mais do que um entretenimento OK, com atuações funcionais, humor bem resolvido e que sabe que não reinventa a roda. Ainda assim, encontra força em sua protagonista, cujas atuação e desenvolvimento de arco dramático carregam o filme nas costas.

Nota: 6,5


sexta-feira, 6 de maio de 2022

DOUTOR ESTRANHO NO MULTIVERSO DA LOUCURA (2022) - RESENHA CRÍTICA

Tenho perdido o tesão por conteúdos da Marvel Studios nos últimos tempos. Sou meio marvete, gosto do conteúdo da "Casa das Ideias" em alguns departamentos, mas não é nenhuma besteira afirmar que o material lançado pelo conglomerado de mídia nos últimos anos tem sido cada vez mais formulaico e pragmático, sem muita margem para discrepâncias, para o bem ou para o mal. A fórmula de sucesso do estúdio tem forçado os filmes a serem gigantescos comerciais de preparação para os futuros conteúdos e pouca roupagem cinematográfica de fato integra esses materiais. Entendo que o entretenimento em várias instâncias funciona assim, mas estas contradições têm se mostrado cada vez mais evidentes e, em alguns casos, incômodas. Não vi "Eternos", nem "Shang-Chi" e nem a maior parte dos seriados do estúdio no Disney Plus e, sinceramente, eles pouco atiçam meu faro atualmente.

Mas chega de conversa fiada. Vocês estão aqui para saber o que eu achei do filme do Dotô Istranho, então... vamos lá. O filme é dirigido por Sam Raimi (responsável pela lendária série de filmes do Evil Dead e da primeira trilogia de filmes do Homem-Aranha, da Sony) e é o filme número quatrocentos e cinquenta e dez do Universo Cinematográfico da Marvel (o número provavelmente não é esse, mas quem se importa a essa altura, não é mesmo?) e estrela Benedict Cumberbatch, Elizabeth Olsen, Rachel McAdams e Xochitl Gomez. 

Este filme é, até o momento, uma joia rara no Universo Cinematográfico Marvel. Não pela sua qualidade de um modo geral (que é discutível, mais à frente explico os motivos) mas pelo potencial que ele tem de ser algo realmente único na linha do tempo das produções do estúdio. É um filme muito corajoso em vários níveis, e que traz um conflito de visões muito forte entre a produção e a parte criativa, conflito este notável ao se avaliar a estética, a trilha sonora e a direção do projeto. 

A direção de Sam Raimi mostra todos os seus traços de originalidade e autoria muito marcantes. Raimi imprime toda a sua criativa visão voltada para o horror e o grotesco, no que é muito bem-sucedido. Temos aqui, como poucas vezes no cinema de super-heróis, um cinema autoral de verdade (chupa, Snyder), o que é muito bem traduzido na fotografia do filme. Temos alguns planos realmente criativos que intercalam entre os visuais psicodélicos das múltiplas cores meio epilépticas que perpassam a estética exótica do universo do Doutor Estranho, visuais sombrios e meio góticos que me remeteram fortemente aos cenários da série de jogos Castlevania e alguns elementos de horror que passam pelas criaturas lovecraftianas e por um leve teor de nojeira sanguinolenta, algo outrora inimaginável para um filme do Universo Marvel. E nesse sentido, o diretor tem uma liberdade criativa até bem surpreendente para os padrões desses filmes: temos movimentos de câmera meio frenéticos, uns planos holandeses meio conceitão, lentes distorcidas e... jumpscares! Sim, sustos de terror, num filme da Marvel. É, temos uma justificativa relativamente plausível para a classificação indicativa ser PG-13.

Se a direção brilha com tudo isso, o mesmo não pode ser dito do roteiro, que é bem fraco e aposta muito em facilitações narrativas para funcionar. Não é muito orgânica a forma como os personagens vão de um ponto a outro para fazer a história andar e é ainda menos orgânico, beirando o preguiçoso, o jeito que o projeto lida com as complexidades envolvidas no conceito de multiverso. Desde o começo, desde "Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa", que nos apresentou a esse conceito, ele nos foi vendido como algo complexo e cheio de minúcias. Mas desde então ele só é utilizado para ir de um ponto a outro numa trama com facilitações narrativas e vender nostalgia a preço de ouro, e é exatamente isso que acontece aqui: há milhões de universos disponíveis, mas eles rapidamente vão parar exatamente no universo que precisam para fazer a trama andar, com personagens que nos são mostrados para fazer valer o mais puro suco da nostalgia. 

Ok, é divertido e reconfortante rever personagens queridos, aparições de atores classudos ao som de trilhas sonoras clássicas, e nisso este filme funciona muito bem para provocar aqueles gritos empolgados na sala de cinema do fã eufórico. O fan-service nunca foi mais real. O problema... é que isso não apenas não é orgânico e tira a imersão do filme com imensa facilidade, mas também só falta eles colocarem uma placa de aplausos nessas cenas. OK, isso aconteceu muito no filme do Homem-Aranha, mas ali a coisa se deu de uma forma um pouco mais orgânica (sendo "um pouco" a expressão-chave, porque até ali algumas cenas soaram forçadas e testaram minha suspensão de descrença). Aqui o ritmo do filme é meio quebrado para dar lugar a uma contemplação de nostalgia. 

Além disso, temos aqui a mão pesada do estúdio ao inserir elementos costumeiros em filmes Marvel Studios: algumas piadas com péssimo timing cômico e elementos que o universo cinematográfico precisa para preparar o público para as continuações, que é outra coisa que me tirou do filme em alguns momentos. É meio chato perceber que parte do filme não se dedica a si mesmo, mas sim a ser um longo comercial para as sequências. Isso acontece com frequência nos blockbusters atuais e é o tipo da coisa bem desagradável aos sentidos. Sem falar na necessidade que tem sido criada e cada vez mais estimulada pelo estúdio, do consumo cada vez maior de obras interconectadas para a compreensão completa do conteúdo em voga. Ou seja: tem que fazer um curso para entender o filme, assistir trocentas séries e outros filmes para entender o que acontece neste. Isso é especialmente gritante quando você analisa o arco dramático da Feiticeira Escarlate. Não me entendam mal, ainda é relativamente possível entender as nuances deste filme como uma experiência isolada das outras, mas se perde muito do impacto emocional possível a ser extraído da experiência. E esse tipo de coisa não é culpa do expectador, e sim do filme e do estúdio, que falham em fazer com que os conteúdos se bastem em si mesmos.

As atuações, por sua vez, são boas. Benedict Cumberbatch não é particularmente brilhante, mas é um ator competente o suficiente para fazer o personagem funcionar, e está muito mais à vontade no papel de Stephen Strange do que em seu primeiro filme-solo, lá em 2016. Elizabeth Olsen, por sua vez, é muito potente: sua Feiticeira Escarlate está mais perigosa e poderosa do que nunca. A atriz consegue tanto expressar o grande drama emocional pelo qual passa a sua personagem quanto transparecer um grande vetor de perigo quando em cena, o que produz alguns dos momentos mais assustadores da trama, quando a personagem está no encalço dos protagonistas. Os absurdos poderes de Wanda deixam os mocinhos em extremo perigo e adicionam uma tremenda urgência à sua missão. Xochitl Gomez está bem e a relação com o personagem de Cumberbatch funciona parcialmente, mas no final do filme ela ganha um Deus Ex Machina muito conveniente. O restante do elenco está funcional, eles conseguem cumprir o que o roteiro pede de maneira satisfatória.

Ao fim do dia, "Doutor Estranho no Multiverso da Loucura" pode não ser um excelente filme e certamente sofre com as idiossincrasias comuns dos filmes do UCM, mas é um projeto divertido, criativo, poderoso e, conceitualmente falando, é bem diferente do que se vê habitualmente nos filmes Marvel, tudo isso pelo lado da competente direção de Sam Raimi, o que justifica o adjetivo "joia rara" atribuído no começo da resenha. Se continuará a ser uma joia rara ou não, não saberemos até ver as próximas criações do estúdio. Mas Raimi pode ter criado um novo momento para as produções da Marvel Studios. É ver para crer.

Nota: 7,5

terça-feira, 3 de maio de 2022

RUPTURA/SEVERANCE (2022) - RESENHA CRÍTICA


Admito que não sou o maior fã de séries do mundo, sem o menor pudor. Tenho uma preguiça enorme para vê-los, acho que eles demandam um tempo enorme. Apesar disso, acredito que a dinâmica de lançamentos melhorou bastante nos últimos anos e a logística da quantidade de episódios mudou muito. Antigamente era muito mais comum você ver seriados com trocentas temporadas, vinte e tantos episódios por cada uma, e isso é algo que não se vê mais hoje em dia. Parece que o consumo de seriados ficou mais ágil. Sinceramente, acho que isso foi uma melhora. Ninguém merece ficar esperando 20 episódios de encheção de linguiça para se chegar ao mesmo resultado que se chegaria com nove ou dez episódios.

E é neste formato que foi feita a série sobre a qual falaremos no texto atual: "Ruptura" (Severance, no original), indicada para mim pela querida Daniela Sales, autora do canal Vida de Autista. Criada por Dan Erickson e lançada em fevereiro de 2022, pelo canal de streaming Apple TV Plus, "Ruptura" é sobre um homem chamado Mark, que começou a trabalhar para uma empresa chamada Lumon e se submeteu voluntariamente a um processo chamado "Ruptura", no qual dividiu sua mente em duas consciências diferentes: a consciência do trabalho e a consciência da vida pessoal, na esperança de ter paz por 8 horas ao dia enquanto desliga sua mente pessoal e deixa apenas a consciência do trabalho ativa durante o expediente. O melhor dos mundos, não? Poder trabalhar sem o menor resquício de problemas da vida pessoal? Pois é... durante a série, você vai descobrindo que as coisas não são bem assim. Junto com seus colegas de trabalho, Dylan, Irving e Helly, Mark descobrirá que nada é o que parece, e que aquele lugar é o verdadeiro inferno.

A direção da série fica por conta do comediante Ben Stiller e da cinematógrafa Aoife McArdle, e é impressionante o trabalho que fazem aqui. É uma direção primorosa, como poucas vezes vi em seriados de televisão, digna das maiores obras-primas do cinema. Há muito critério no que mostrar ao espectador. A fotografia aposta bastante em planos estáticos bem abertos para diversos fins: estabelecer a ambientação opressora do escritório, cheia de corredores brancos, sinuosos e imensos, apresentar o ambiente geral onde as narrativas se passam, passar a sensação de que os personagens são ínfimos em relação ao ambiente como um todo, que é bem opressor, o que também é corroborado pelos tons quase sempre muito frios e a cor predominante, que é o azul. É sempre bom ver um conteúdo com boa fotografia, é aquele tipo de coisa que você assiste querendo pausar de vez em quando pra tirar um print screen e acaba quase sempre tendo uma boa foto pra botar de papel de parede no celular. Temos poucos movimentos de câmera, durante toda a série, mas quando são usados, a tensão é potencializada com gosto e quase sempre tememos pelos personagens quando isso acontece. 

Há também uma boa utilização, em algumas cenas, do famoso "Efeito Vertigo", popularizado por Alfred Hitchcock no filme "Vertigo" e mais recentemente por "Tubarão" de Steven Spielberg (temos texto sobre esse filme no blog, aqui). É um efeito que distorce a percepção ótica do ambiente através da mudança da distância focal da câmera. Esse efeito é usado principalmente nas cenas onde os protagonistas mudam de consciência do interno para o externo e vice-versa, e isso cria alguns dos pontos mais fortes de atuação do seriado; vemos em alguns momentos os protagonistas passando por experiências traumáticas no ambiente de trabalho e logo em seguida trocando de consciência ao saírem dali como se nada tivesse acontecido, e a atuação nestes casos é realmente brilhante. 

O design de produção é inspirado, ora vejam, em um filme de terror: o responsável técnico Jeremy Hindle declarou em entrevista à revista "The Verge" que os longos corredores citados foram inspirados no design da nave Nostromo, mostrada em "Alien, o Oitavo Passageiro", de Ridley Scott, lançado em 1979. E de fato, toda a ambientação do escritório da Lumon remete ao clássico setentista, desde os corredores até a tecnologia meio retrô. Embora a estética de "Ruptura" não tenha nada de futuro usado em sua narrativa, é bem evidente a inspiração. Há também muita simbologia envolvida na série, tanto em torno dos signos da empresa, das frases atribuídas aos fundadores e das estátuas deles, quanto referências bíblicas em torno das ações dos personagens.

O roteiro não tem pressa alguma e toma o tempo que precisa para desenvolver sua narrativa, com a cadência necessária, mas não desperdiça absolutamente nada e nenhum tempo utilizado parece desprendido de maneira banal: tudo que acontece parece ter uma função na trama e isso é ótimo, ainda mais quando se está assistindo a um seriado. Ninguém quer passar horas e horas assistindo a encheção de linguiça e os roteiristas parecem realmente ter entendido isso. Inicialmente o roteiro faz com que a relação entre os personagens se estabeleça um pouco como uma comédia de escritório no estilo "The Office" ou "Brooklyn 99", servindo como uma ponte emocional entre estes personagens e o público. Mas desde o começo há uma construção de tensão consistente.

A construção dos personagens é muito boa, todos os protagonistas são bons o suficiente para você se importar com eles e temer por eles quando as coisas ficam tensas. A série despende bastante tempo em criar e desenvolver esses personagens e não tem medo de demorar o tempo que for necessário para isso, ao mesmo tempo em que associa cada um deles a um momento-chave específico para cada, e todos acabam sendo importantes para os momentos finais da temporada, que deixam vários ganchos interessantes a serem desenvolvidos em temporadas futuras. As atuações são espetaculares. Os quatro principais dão show. Temos Adam Scott, Britt Lower, Zach Cherry e John Turturro (sim, o Carmine Falcone, do Batman de 2022) e participações especiais de Patricia Arquette e do lendário Christopher Walken (o Morty de "Click", entre outros papéis). Cada personagem tem uma personalidade muito bem definida e identificável.

Muitas pessoas estão tendo diversas leituras acerca do subtexto da série, algumas sobre existencialismo, outras sobre sobrecarga emocional e saúde mental e outras ainda sobre como o trabalho precarizado é cada dia mais uma norma na sociedade atual. Eu vou nessa onda também, para ser sincero, apesar de achar que a série é bem mais esperta do que parece.

Temos em "Ruptura" referências diretas e indiretas à forma como o neoliberalismo individualiza cada vez mais as relações de trabalho, as atomizando a ponto de tornar os trabalhadores em entes cada vez mais individualistas e procurando fazer com que eles vejam uns aos outros como inimigos em potencial, como, por exemplo, as constantes desmobilizações que a chefia da empresa tenta impor ao departamento de Mark. A força da classe trabalhadora para vencer o sistema está na organização de classe e perseguição em unidade por melhores condições de trabalho e, em uma organização eventualmente mais politizada, para destruir o sistema. A Lumon tanto sabe disso que busca sempre tolher esta organização, procurando a todo momento individualizar os funcionários de cada setor. Preste atenção a quantidade de cenas nessa série onde é referenciada a primazia do "sucesso individual" ou da "supressão do indivíduo em favor do sistema". Não falha.

Mas afinal, o que levaria uma pessoa a tomar a decisão que os personagens tomaram no seriado? Para falar a verdade, acho que as pessoas estão sendo anestesiadas e cada vez mais condicionadas à ideia de que esse é o único jogo a ser jogado, o único sistema a ser aceito e a única forma capaz de organizar a vida em sociedade de maneira satisfatória. A ponto de que, mesmo com as discussões sobre saúde mental e temas como depressão, suicídio e síndrome de Burnout em pauta, os cuidados em torno do subconsciente humano são, ainda assim, extremamente individualizados. Ou seja: dispomos de saúde mental pública muito sucateada e o acesso à saúde mental de qualidade é altamente restritivo. O que quero dizer com isto é: as pessoas se indignam ao se sentirem manipuladas, mas não o suficiente para se revoltarem, e acabam se deixando levar porque querem fugir da dor do dia a dia, da opressão que é viver num sistema que é pensado e estruturado para esgotar até sua última força de trabalho e ainda assim te manter inerte. Assim funciona o capitalismo, especialmente numa época onde suas complexidades estão cada vez mais evidentes: um sistema que não se interessa em parecer bom, e sim em parecer inevitável. 

É por isso que séries como esta são permitidas a existir: a crítica ao sistema dentro do sistema acaba sendo, assim, muito eficaz para suprir a necessidade do público, mas não o suficiente para radicalizá-lo.

Ainda assim, "Ruptura" é de fato uma série fora da caixinha, com uma proposta impactante, ótimas atuações, fotografia maravilhosa e um comentário social ácido.

Uma obra-prima, não há dúvidas.

Nota: 10,0