A linguagem do cinema é extremamente multifacetada. É uma forma de arte capaz de despertar no público as mais diversas sensações, atribuir significados através da mera combinação de imagens e sons e literalmente produzir alegria, serenidade, angústia, tristeza... e medo. O medo é um dos sentimentos mais poderosos que um longa pode causar, pois ele literalmente dribla a limitação estabelecida pela tela (a tal da quarta parede) e atinge diretamente o espectador. É muito fácil sentir coisas como felicidade, tranquilidade e humor enquanto se vê um filme. Mas quando se está protegido pela tela, apenas um projeto muito bom e que sabe o que está fazendo pode fazer você sentir o MEDO propriamente dito.
Há muitas formas de um terror fazer isso. Seja apelando a medos alegóricos (figuras naturalmente bizarras, como palhaços, ou os serial killers dos "slashers") ou a assombrações e coisas relativas ao espiritual, não há muito mistério, não à toa esse tipo de projeto é extremamente popular no terror, sendo inclusive temas muito recorrentes nas produções do gênero. Mas o melhor tipo, a meu juízo, é aquele tipo de terror que busca explorar as ansiedades mais reais e palpáveis, como o fato de não conhecermos de verdade as pessoas de quem nos aproximamos, ou literalmente lidar com um stalker (perseguidor). É por isso, por exemplo, que obras como "Psicose" e "Halloween - A Noite do Terror", funcionam tão bem até os dias de hoje, mesmo tendo sobre eles a implacável ação do tempo. Acredito que não haja terror mais eficiente do que aquele que reproduz, em alguma escala, seus medos mais íntimos, que toca em suas feridas mais abertas e se aproveita da sua maior vulnerabilidade.
E é neste quadro que se localiza "O Homem Invisível", que comentarei a seguir. Lançado em 2020, é uma adaptação do livro homônimo publicado em 1897 pelo autor H.G. Wells, que por sua vez é um clássico da ficção científica. do qual também se originou o clássico filme de 1933. O filme é escrito e dirigido por Leigh Whannell (roteirista de "Jogos Mortais") e estrela Elisabeth Moss, Aldis Hodge, Oliver Jackson-Cohen e Storm Reid. Na trama, Olsen vive Cecilia, uma mulher que foge de seu marido, Adrian (Jackson-Cohen), um cientista pioneiro em ótica, após viver um relacionamento profundamente abusivo nas mãos dele. Logo depois, Adrian supostamente morre, mas coisas estranhas começam a acontecer com Cecília e ela passa a duvidar da morte de Adrian, suspeitar que de alguma forma ele tenha ficado invisível e a questionar sua própria sanidade.
A direção de Whannell é muito eficiente na construção da tensão desde o começo, na casa mostrando como a protagonista se encontra isolada e sempre alerta, indicando que mesmo na aparente quietude, ela está em perigo. O primeiro ato é muito eficaz em estabelecer a situação na qual o filme se desenvolve, com planos longos e bem abertos que deixam claro que o ambiente onde ela vive é extremamente opressor. Há também um contraste entre essas cenas e alguns momentos mais leves entre Cecília, sua irmã e seus amigos, que serve para gerar identificação do público com esses personagens (são muito bons, exceção apenas para a irmã). O ritmo permanece cadenciado até o segundo ato, o que é ótimo, pois vemos uma quantidade cada vez mais bizarra de coisas acontecendo e sentindo a angústia da protagonista, que vai cada vez mais sendo boicotada, privada de sua vida social e literalmente sendo tida como louca (o famoso gaslighting). Tudo isso é muito crível e você se coloca no lugar de Cecília sem muita dificuldade.
O roteiro é extremamente eficaz em explorar toda a verossimilhança da situação vivida pela protagonista e fundi-la isso com o aspecto da ficção científica. E traz um importante comentário social: isolamento experimentado pela personagem de Moss não é nada muito diferente do isolamento que muitas pessoas vítimas de relacionamentos tóxicos, em sua maioria mulheres, viveram ou vivem na vida real. A mistura produz um clima de tensão, angústia e paranoia crescentes. O filme, porém, não é perfeito neste aspecto: há uma quebra de ritmo muito evidente do segundo para o terceiro ato, no qual o projeto abandona o ótimo clima de tensão e suspense estabelecidos para dar lugar a uma ação mais direta, com a protagonista finalmente tomando uma atitude sobre tudo o que está vivendo. Eu não exatamente gosto disso, mas acho que funciona para o grande esquema das coisas aqui.
Gosto, em algum nível, da ironia do filme em mostrar a personagem de Moss tendo que falar coisas como "ele está aqui conosco" ou "foi ele, não eu" em situações que desafiam a lógica e o ceticismo dos outros personagens, numa vibe parecida com a do Andy Barclay em "Brinquedo Assassino". Há certas semelhanças entre os dois projetos, não há como não notar.
Mas nada disso seria possível sem a presença inigualável da atriz Elisabeth Moss. Não, sério, não seria absurdo se todo o trecho sobre atuação desta resenha fosse só sobre ela. Todas as circunstâncias aqui inscritas perpassam sua atuação, que é nada menos do que brilhante. Ela consegue carregar consigo muita verdade e verossimilhança em relação a tudo o que sua personagem passa, todo o pânico e a agorafobia que ela sente, de maneira brilhante. Como o vilão passa o tempo quase todo na invisibilidade, ela precisa fazer muita atuação corporal sozinha, e dá um verdadeiro show. É importante também ressaltar que sua personagem não é o típico estereótipo do protagonista burro de filme de terror: Cecília é esperta, descobre as coisas que precisa descobrir numa progressão lógica e verossímil, o que é sempre muito bem-vindo, e sabe o que precisa fazer para sobreviver aos perigos mais imediatos quando estes se apresentam. No elenco de apoio, Aldis Hodge está muito bem e Oliver Jackson-Cohen nem faz tanta coisa assim durante o filme, mas cumpre um papel importante de maneira bem eficaz no ato final.
Tenho também que dar um destaque ENORME para o design de som e a trilha sonora de Benjamin Wallfisch. O som do filme nas cenas de tensão faz até mesmo cada passo dado pelos personagens parecer perigoso, e dadas as características especiais do vilão, cada mínimo barulho pode ser indicativo de um perigo à espreita. Diante deste quadro, o uso inteligente e minimalista da trilha sonora se faz necessário, e de fato isso é feito. Não há aqui a típica boba pontuação de jumpscares a partir dos acordes de trilha: isto dá lugar ao silêncio quase absoluto, porém muito mais efetivo, quase torturante. Nas cenas mais de ação, há o uso de uma trilha meio bizarra, com notas estridentes, e um pouco mais agitada, porém apropriada.
No fim, "O Homem Invisível" é um ótimo terror de ficção científica com um comentário social muito pertinente sobre relacionamentos abusivos, que me conquistou pela direção eficiente e pelo trabalho maravilhoso da atriz principal. Brilhante trabalho de atualização do clássico que lhe deu origem.
Nota: 9,0
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