Tenho perdido o tesão por conteúdos da Marvel Studios nos últimos tempos. Sou meio marvete, gosto do conteúdo da "Casa das Ideias" em alguns departamentos, mas não é nenhuma besteira afirmar que o material lançado pelo conglomerado de mídia nos últimos anos tem sido cada vez mais formulaico e pragmático, sem muita margem para discrepâncias, para o bem ou para o mal. A fórmula de sucesso do estúdio tem forçado os filmes a serem gigantescos comerciais de preparação para os futuros conteúdos e pouca roupagem cinematográfica de fato integra esses materiais. Entendo que o entretenimento em várias instâncias funciona assim, mas estas contradições têm se mostrado cada vez mais evidentes e, em alguns casos, incômodas. Não vi "Eternos", nem "Shang-Chi" e nem a maior parte dos seriados do estúdio no Disney Plus e, sinceramente, eles pouco atiçam meu faro atualmente.
Mas chega de conversa fiada. Vocês estão aqui para saber o que eu achei do filme do Dotô Istranho, então... vamos lá. O filme é dirigido por Sam Raimi (responsável pela lendária série de filmes do Evil Dead e da primeira trilogia de filmes do Homem-Aranha, da Sony) e é o filme número quatrocentos e cinquenta e dez do Universo Cinematográfico da Marvel (o número provavelmente não é esse, mas quem se importa a essa altura, não é mesmo?) e estrela Benedict Cumberbatch, Elizabeth Olsen, Rachel McAdams e Xochitl Gomez.
Este filme é, até o momento, uma joia rara no Universo Cinematográfico Marvel. Não pela sua qualidade de um modo geral (que é discutível, mais à frente explico os motivos) mas pelo potencial que ele tem de ser algo realmente único na linha do tempo das produções do estúdio. É um filme muito corajoso em vários níveis, e que traz um conflito de visões muito forte entre a produção e a parte criativa, conflito este notável ao se avaliar a estética, a trilha sonora e a direção do projeto.
A direção de Sam Raimi mostra todos os seus traços de originalidade e autoria muito marcantes. Raimi imprime toda a sua criativa visão voltada para o horror e o grotesco, no que é muito bem-sucedido. Temos aqui, como poucas vezes no cinema de super-heróis, um cinema autoral de verdade (chupa, Snyder), o que é muito bem traduzido na fotografia do filme. Temos alguns planos realmente criativos que intercalam entre os visuais psicodélicos das múltiplas cores meio epilépticas que perpassam a estética exótica do universo do Doutor Estranho, visuais sombrios e meio góticos que me remeteram fortemente aos cenários da série de jogos Castlevania e alguns elementos de horror que passam pelas criaturas lovecraftianas e por um leve teor de nojeira sanguinolenta, algo outrora inimaginável para um filme do Universo Marvel. E nesse sentido, o diretor tem uma liberdade criativa até bem surpreendente para os padrões desses filmes: temos movimentos de câmera meio frenéticos, uns planos holandeses meio conceitão, lentes distorcidas e... jumpscares! Sim, sustos de terror, num filme da Marvel. É, temos uma justificativa relativamente plausível para a classificação indicativa ser PG-13.
Se a direção brilha com tudo isso, o mesmo não pode ser dito do roteiro, que é bem fraco e aposta muito em facilitações narrativas para funcionar. Não é muito orgânica a forma como os personagens vão de um ponto a outro para fazer a história andar e é ainda menos orgânico, beirando o preguiçoso, o jeito que o projeto lida com as complexidades envolvidas no conceito de multiverso. Desde o começo, desde "Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa", que nos apresentou a esse conceito, ele nos foi vendido como algo complexo e cheio de minúcias. Mas desde então ele só é utilizado para ir de um ponto a outro numa trama com facilitações narrativas e vender nostalgia a preço de ouro, e é exatamente isso que acontece aqui: há milhões de universos disponíveis, mas eles rapidamente vão parar exatamente no universo que precisam para fazer a trama andar, com personagens que nos são mostrados para fazer valer o mais puro suco da nostalgia.
Ok, é divertido e reconfortante rever personagens queridos, aparições de atores classudos ao som de trilhas sonoras clássicas, e nisso este filme funciona muito bem para provocar aqueles gritos empolgados na sala de cinema do fã eufórico. O fan-service nunca foi mais real. O problema... é que isso não apenas não é orgânico e tira a imersão do filme com imensa facilidade, mas também só falta eles colocarem uma placa de aplausos nessas cenas. OK, isso aconteceu muito no filme do Homem-Aranha, mas ali a coisa se deu de uma forma um pouco mais orgânica (sendo "um pouco" a expressão-chave, porque até ali algumas cenas soaram forçadas e testaram minha suspensão de descrença). Aqui o ritmo do filme é meio quebrado para dar lugar a uma contemplação de nostalgia.
Além disso, temos aqui a mão pesada do estúdio ao inserir elementos costumeiros em filmes Marvel Studios: algumas piadas com péssimo timing cômico e elementos que o universo cinematográfico precisa para preparar o público para as continuações, que é outra coisa que me tirou do filme em alguns momentos. É meio chato perceber que parte do filme não se dedica a si mesmo, mas sim a ser um longo comercial para as sequências. Isso acontece com frequência nos blockbusters atuais e é o tipo da coisa bem desagradável aos sentidos. Sem falar na necessidade que tem sido criada e cada vez mais estimulada pelo estúdio, do consumo cada vez maior de obras interconectadas para a compreensão completa do conteúdo em voga. Ou seja: tem que fazer um curso para entender o filme, assistir trocentas séries e outros filmes para entender o que acontece neste. Isso é especialmente gritante quando você analisa o arco dramático da Feiticeira Escarlate. Não me entendam mal, ainda é relativamente possível entender as nuances deste filme como uma experiência isolada das outras, mas se perde muito do impacto emocional possível a ser extraído da experiência. E esse tipo de coisa não é culpa do expectador, e sim do filme e do estúdio, que falham em fazer com que os conteúdos se bastem em si mesmos.
As atuações, por sua vez, são boas. Benedict Cumberbatch não é particularmente brilhante, mas é um ator competente o suficiente para fazer o personagem funcionar, e está muito mais à vontade no papel de Stephen Strange do que em seu primeiro filme-solo, lá em 2016. Elizabeth Olsen, por sua vez, é muito potente: sua Feiticeira Escarlate está mais perigosa e poderosa do que nunca. A atriz consegue tanto expressar o grande drama emocional pelo qual passa a sua personagem quanto transparecer um grande vetor de perigo quando em cena, o que produz alguns dos momentos mais assustadores da trama, quando a personagem está no encalço dos protagonistas. Os absurdos poderes de Wanda deixam os mocinhos em extremo perigo e adicionam uma tremenda urgência à sua missão. Xochitl Gomez está bem e a relação com o personagem de Cumberbatch funciona parcialmente, mas no final do filme ela ganha um Deus Ex Machina muito conveniente. O restante do elenco está funcional, eles conseguem cumprir o que o roteiro pede de maneira satisfatória.
Ao fim do dia, "Doutor Estranho no Multiverso da Loucura" pode não ser um excelente filme e certamente sofre com as idiossincrasias comuns dos filmes do UCM, mas é um projeto divertido, criativo, poderoso e, conceitualmente falando, é bem diferente do que se vê habitualmente nos filmes Marvel, tudo isso pelo lado da competente direção de Sam Raimi, o que justifica o adjetivo "joia rara" atribuído no começo da resenha. Se continuará a ser uma joia rara ou não, não saberemos até ver as próximas criações do estúdio. Mas Raimi pode ter criado um novo momento para as produções da Marvel Studios. É ver para crer.
Nota: 7,5
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