E é neste formato que foi feita a série sobre a qual falaremos no texto atual: "Ruptura" (Severance, no original), indicada para mim pela querida Daniela Sales, autora do canal Vida de Autista. Criada por Dan Erickson e lançada em fevereiro de 2022, pelo canal de streaming Apple TV Plus, "Ruptura" é sobre um homem chamado Mark, que começou a trabalhar para uma empresa chamada Lumon e se submeteu voluntariamente a um processo chamado "Ruptura", no qual dividiu sua mente em duas consciências diferentes: a consciência do trabalho e a consciência da vida pessoal, na esperança de ter paz por 8 horas ao dia enquanto desliga sua mente pessoal e deixa apenas a consciência do trabalho ativa durante o expediente. O melhor dos mundos, não? Poder trabalhar sem o menor resquício de problemas da vida pessoal? Pois é... durante a série, você vai descobrindo que as coisas não são bem assim. Junto com seus colegas de trabalho, Dylan, Irving e Helly, Mark descobrirá que nada é o que parece, e que aquele lugar é o verdadeiro inferno.
terça-feira, 3 de maio de 2022
RUPTURA/SEVERANCE (2022) - RESENHA CRÍTICA
A direção da série fica por conta do comediante Ben Stiller e da cinematógrafa Aoife McArdle, e é impressionante o trabalho que fazem aqui. É uma direção primorosa, como poucas vezes vi em seriados de televisão, digna das maiores obras-primas do cinema. Há muito critério no que mostrar ao espectador. A fotografia aposta bastante em planos estáticos bem abertos para diversos fins: estabelecer a ambientação opressora do escritório, cheia de corredores brancos, sinuosos e imensos, apresentar o ambiente geral onde as narrativas se passam, passar a sensação de que os personagens são ínfimos em relação ao ambiente como um todo, que é bem opressor, o que também é corroborado pelos tons quase sempre muito frios e a cor predominante, que é o azul. É sempre bom ver um conteúdo com boa fotografia, é aquele tipo de coisa que você assiste querendo pausar de vez em quando pra tirar um print screen e acaba quase sempre tendo uma boa foto pra botar de papel de parede no celular. Temos poucos movimentos de câmera, durante toda a série, mas quando são usados, a tensão é potencializada com gosto e quase sempre tememos pelos personagens quando isso acontece.
Há também uma boa utilização, em algumas cenas, do famoso "Efeito Vertigo", popularizado por Alfred Hitchcock no filme "Vertigo" e mais recentemente por "Tubarão" de Steven Spielberg (temos texto sobre esse filme no blog, aqui). É um efeito que distorce a percepção ótica do ambiente através da mudança da distância focal da câmera. Esse efeito é usado principalmente nas cenas onde os protagonistas mudam de consciência do interno para o externo e vice-versa, e isso cria alguns dos pontos mais fortes de atuação do seriado; vemos em alguns momentos os protagonistas passando por experiências traumáticas no ambiente de trabalho e logo em seguida trocando de consciência ao saírem dali como se nada tivesse acontecido, e a atuação nestes casos é realmente brilhante.
O design de produção é inspirado, ora vejam, em um filme de terror: o responsável técnico Jeremy Hindle declarou em entrevista à revista "The Verge" que os longos corredores citados foram inspirados no design da nave Nostromo, mostrada em "Alien, o Oitavo Passageiro", de Ridley Scott, lançado em 1979. E de fato, toda a ambientação do escritório da Lumon remete ao clássico setentista, desde os corredores até a tecnologia meio retrô. Embora a estética de "Ruptura" não tenha nada de futuro usado em sua narrativa, é bem evidente a inspiração. Há também muita simbologia envolvida na série, tanto em torno dos signos da empresa, das frases atribuídas aos fundadores e das estátuas deles, quanto referências bíblicas em torno das ações dos personagens.
O roteiro não tem pressa alguma e toma o tempo que precisa para desenvolver sua narrativa, com a cadência necessária, mas não desperdiça absolutamente nada e nenhum tempo utilizado parece desprendido de maneira banal: tudo que acontece parece ter uma função na trama e isso é ótimo, ainda mais quando se está assistindo a um seriado. Ninguém quer passar horas e horas assistindo a encheção de linguiça e os roteiristas parecem realmente ter entendido isso. Inicialmente o roteiro faz com que a relação entre os personagens se estabeleça um pouco como uma comédia de escritório no estilo "The Office" ou "Brooklyn 99", servindo como uma ponte emocional entre estes personagens e o público. Mas desde o começo há uma construção de tensão consistente.
A construção dos personagens é muito boa, todos os protagonistas são bons o suficiente para você se importar com eles e temer por eles quando as coisas ficam tensas. A série despende bastante tempo em criar e desenvolver esses personagens e não tem medo de demorar o tempo que for necessário para isso, ao mesmo tempo em que associa cada um deles a um momento-chave específico para cada, e todos acabam sendo importantes para os momentos finais da temporada, que deixam vários ganchos interessantes a serem desenvolvidos em temporadas futuras. As atuações são espetaculares. Os quatro principais dão show. Temos Adam Scott, Britt Lower, Zach Cherry e John Turturro (sim, o Carmine Falcone, do Batman de 2022) e participações especiais de Patricia Arquette e do lendário Christopher Walken (o Morty de "Click", entre outros papéis). Cada personagem tem uma personalidade muito bem definida e identificável.
Muitas pessoas estão tendo diversas leituras acerca do subtexto da série, algumas sobre existencialismo, outras sobre sobrecarga emocional e saúde mental e outras ainda sobre como o trabalho precarizado é cada dia mais uma norma na sociedade atual. Eu vou nessa onda também, para ser sincero, apesar de achar que a série é bem mais esperta do que parece.
Temos em "Ruptura" referências diretas e indiretas à forma como o neoliberalismo individualiza cada vez mais as relações de trabalho, as atomizando a ponto de tornar os trabalhadores em entes cada vez mais individualistas e procurando fazer com que eles vejam uns aos outros como inimigos em potencial, como, por exemplo, as constantes desmobilizações que a chefia da empresa tenta impor ao departamento de Mark. A força da classe trabalhadora para vencer o sistema está na organização de classe e perseguição em unidade por melhores condições de trabalho e, em uma organização eventualmente mais politizada, para destruir o sistema. A Lumon tanto sabe disso que busca sempre tolher esta organização, procurando a todo momento individualizar os funcionários de cada setor. Preste atenção a quantidade de cenas nessa série onde é referenciada a primazia do "sucesso individual" ou da "supressão do indivíduo em favor do sistema". Não falha.
Mas afinal, o que levaria uma pessoa a tomar a decisão que os personagens tomaram no seriado? Para falar a verdade, acho que as pessoas estão sendo anestesiadas e cada vez mais condicionadas à ideia de que esse é o único jogo a ser jogado, o único sistema a ser aceito e a única forma capaz de organizar a vida em sociedade de maneira satisfatória. A ponto de que, mesmo com as discussões sobre saúde mental e temas como depressão, suicídio e síndrome de Burnout em pauta, os cuidados em torno do subconsciente humano são, ainda assim, extremamente individualizados. Ou seja: dispomos de saúde mental pública muito sucateada e o acesso à saúde mental de qualidade é altamente restritivo. O que quero dizer com isto é: as pessoas se indignam ao se sentirem manipuladas, mas não o suficiente para se revoltarem, e acabam se deixando levar porque querem fugir da dor do dia a dia, da opressão que é viver num sistema que é pensado e estruturado para esgotar até sua última força de trabalho e ainda assim te manter inerte. Assim funciona o capitalismo, especialmente numa época onde suas complexidades estão cada vez mais evidentes: um sistema que não se interessa em parecer bom, e sim em parecer inevitável.
É por isso que séries como esta são permitidas a existir: a crítica ao sistema dentro do sistema acaba sendo, assim, muito eficaz para suprir a necessidade do público, mas não o suficiente para radicalizá-lo.
Ainda assim, "Ruptura" é de fato uma série fora da caixinha, com uma proposta impactante, ótimas atuações, fotografia maravilhosa e um comentário social ácido.
Uma obra-prima, não há dúvidas.
Nota: 10,0
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