terça-feira, 3 de maio de 2022

RUPTURA/SEVERANCE (2022) - RESENHA CRÍTICA


Admito que não sou o maior fã de séries do mundo, sem o menor pudor. Tenho uma preguiça enorme para vê-los, acho que eles demandam um tempo enorme. Apesar disso, acredito que a dinâmica de lançamentos melhorou bastante nos últimos anos e a logística da quantidade de episódios mudou muito. Antigamente era muito mais comum você ver seriados com trocentas temporadas, vinte e tantos episódios por cada uma, e isso é algo que não se vê mais hoje em dia. Parece que o consumo de seriados ficou mais ágil. Sinceramente, acho que isso foi uma melhora. Ninguém merece ficar esperando 20 episódios de encheção de linguiça para se chegar ao mesmo resultado que se chegaria com nove ou dez episódios.

E é neste formato que foi feita a série sobre a qual falaremos no texto atual: "Ruptura" (Severance, no original), indicada para mim pela querida Daniela Sales, autora do canal Vida de Autista. Criada por Dan Erickson e lançada em fevereiro de 2022, pelo canal de streaming Apple TV Plus, "Ruptura" é sobre um homem chamado Mark, que começou a trabalhar para uma empresa chamada Lumon e se submeteu voluntariamente a um processo chamado "Ruptura", no qual dividiu sua mente em duas consciências diferentes: a consciência do trabalho e a consciência da vida pessoal, na esperança de ter paz por 8 horas ao dia enquanto desliga sua mente pessoal e deixa apenas a consciência do trabalho ativa durante o expediente. O melhor dos mundos, não? Poder trabalhar sem o menor resquício de problemas da vida pessoal? Pois é... durante a série, você vai descobrindo que as coisas não são bem assim. Junto com seus colegas de trabalho, Dylan, Irving e Helly, Mark descobrirá que nada é o que parece, e que aquele lugar é o verdadeiro inferno.

A direção da série fica por conta do comediante Ben Stiller e da cinematógrafa Aoife McArdle, e é impressionante o trabalho que fazem aqui. É uma direção primorosa, como poucas vezes vi em seriados de televisão, digna das maiores obras-primas do cinema. Há muito critério no que mostrar ao espectador. A fotografia aposta bastante em planos estáticos bem abertos para diversos fins: estabelecer a ambientação opressora do escritório, cheia de corredores brancos, sinuosos e imensos, apresentar o ambiente geral onde as narrativas se passam, passar a sensação de que os personagens são ínfimos em relação ao ambiente como um todo, que é bem opressor, o que também é corroborado pelos tons quase sempre muito frios e a cor predominante, que é o azul. É sempre bom ver um conteúdo com boa fotografia, é aquele tipo de coisa que você assiste querendo pausar de vez em quando pra tirar um print screen e acaba quase sempre tendo uma boa foto pra botar de papel de parede no celular. Temos poucos movimentos de câmera, durante toda a série, mas quando são usados, a tensão é potencializada com gosto e quase sempre tememos pelos personagens quando isso acontece. 

Há também uma boa utilização, em algumas cenas, do famoso "Efeito Vertigo", popularizado por Alfred Hitchcock no filme "Vertigo" e mais recentemente por "Tubarão" de Steven Spielberg (temos texto sobre esse filme no blog, aqui). É um efeito que distorce a percepção ótica do ambiente através da mudança da distância focal da câmera. Esse efeito é usado principalmente nas cenas onde os protagonistas mudam de consciência do interno para o externo e vice-versa, e isso cria alguns dos pontos mais fortes de atuação do seriado; vemos em alguns momentos os protagonistas passando por experiências traumáticas no ambiente de trabalho e logo em seguida trocando de consciência ao saírem dali como se nada tivesse acontecido, e a atuação nestes casos é realmente brilhante. 

O design de produção é inspirado, ora vejam, em um filme de terror: o responsável técnico Jeremy Hindle declarou em entrevista à revista "The Verge" que os longos corredores citados foram inspirados no design da nave Nostromo, mostrada em "Alien, o Oitavo Passageiro", de Ridley Scott, lançado em 1979. E de fato, toda a ambientação do escritório da Lumon remete ao clássico setentista, desde os corredores até a tecnologia meio retrô. Embora a estética de "Ruptura" não tenha nada de futuro usado em sua narrativa, é bem evidente a inspiração. Há também muita simbologia envolvida na série, tanto em torno dos signos da empresa, das frases atribuídas aos fundadores e das estátuas deles, quanto referências bíblicas em torno das ações dos personagens.

O roteiro não tem pressa alguma e toma o tempo que precisa para desenvolver sua narrativa, com a cadência necessária, mas não desperdiça absolutamente nada e nenhum tempo utilizado parece desprendido de maneira banal: tudo que acontece parece ter uma função na trama e isso é ótimo, ainda mais quando se está assistindo a um seriado. Ninguém quer passar horas e horas assistindo a encheção de linguiça e os roteiristas parecem realmente ter entendido isso. Inicialmente o roteiro faz com que a relação entre os personagens se estabeleça um pouco como uma comédia de escritório no estilo "The Office" ou "Brooklyn 99", servindo como uma ponte emocional entre estes personagens e o público. Mas desde o começo há uma construção de tensão consistente.

A construção dos personagens é muito boa, todos os protagonistas são bons o suficiente para você se importar com eles e temer por eles quando as coisas ficam tensas. A série despende bastante tempo em criar e desenvolver esses personagens e não tem medo de demorar o tempo que for necessário para isso, ao mesmo tempo em que associa cada um deles a um momento-chave específico para cada, e todos acabam sendo importantes para os momentos finais da temporada, que deixam vários ganchos interessantes a serem desenvolvidos em temporadas futuras. As atuações são espetaculares. Os quatro principais dão show. Temos Adam Scott, Britt Lower, Zach Cherry e John Turturro (sim, o Carmine Falcone, do Batman de 2022) e participações especiais de Patricia Arquette e do lendário Christopher Walken (o Morty de "Click", entre outros papéis). Cada personagem tem uma personalidade muito bem definida e identificável.

Muitas pessoas estão tendo diversas leituras acerca do subtexto da série, algumas sobre existencialismo, outras sobre sobrecarga emocional e saúde mental e outras ainda sobre como o trabalho precarizado é cada dia mais uma norma na sociedade atual. Eu vou nessa onda também, para ser sincero, apesar de achar que a série é bem mais esperta do que parece.

Temos em "Ruptura" referências diretas e indiretas à forma como o neoliberalismo individualiza cada vez mais as relações de trabalho, as atomizando a ponto de tornar os trabalhadores em entes cada vez mais individualistas e procurando fazer com que eles vejam uns aos outros como inimigos em potencial, como, por exemplo, as constantes desmobilizações que a chefia da empresa tenta impor ao departamento de Mark. A força da classe trabalhadora para vencer o sistema está na organização de classe e perseguição em unidade por melhores condições de trabalho e, em uma organização eventualmente mais politizada, para destruir o sistema. A Lumon tanto sabe disso que busca sempre tolher esta organização, procurando a todo momento individualizar os funcionários de cada setor. Preste atenção a quantidade de cenas nessa série onde é referenciada a primazia do "sucesso individual" ou da "supressão do indivíduo em favor do sistema". Não falha.

Mas afinal, o que levaria uma pessoa a tomar a decisão que os personagens tomaram no seriado? Para falar a verdade, acho que as pessoas estão sendo anestesiadas e cada vez mais condicionadas à ideia de que esse é o único jogo a ser jogado, o único sistema a ser aceito e a única forma capaz de organizar a vida em sociedade de maneira satisfatória. A ponto de que, mesmo com as discussões sobre saúde mental e temas como depressão, suicídio e síndrome de Burnout em pauta, os cuidados em torno do subconsciente humano são, ainda assim, extremamente individualizados. Ou seja: dispomos de saúde mental pública muito sucateada e o acesso à saúde mental de qualidade é altamente restritivo. O que quero dizer com isto é: as pessoas se indignam ao se sentirem manipuladas, mas não o suficiente para se revoltarem, e acabam se deixando levar porque querem fugir da dor do dia a dia, da opressão que é viver num sistema que é pensado e estruturado para esgotar até sua última força de trabalho e ainda assim te manter inerte. Assim funciona o capitalismo, especialmente numa época onde suas complexidades estão cada vez mais evidentes: um sistema que não se interessa em parecer bom, e sim em parecer inevitável. 

É por isso que séries como esta são permitidas a existir: a crítica ao sistema dentro do sistema acaba sendo, assim, muito eficaz para suprir a necessidade do público, mas não o suficiente para radicalizá-lo.

Ainda assim, "Ruptura" é de fato uma série fora da caixinha, com uma proposta impactante, ótimas atuações, fotografia maravilhosa e um comentário social ácido.

Uma obra-prima, não há dúvidas.

Nota: 10,0



Nenhum comentário:

Postar um comentário