Por hoje, estou de posse de um excelente livro que me foi cedido pelo meu amigo e companheiro da velocidade, Joab Fernandes (@JoFernandes_), chamado "Uma estrela chamada Senna". E aproveitei para escanear a imagem acima. Vendo-a, um leigo qualquer pode imaginar que Ayrton Senna e Nelson Piquet eram considerados os heróis do Brasil na Fórmula 1, os Vingadores, que comiam o creminho gostoso juntos em Teletubbies.
Não eram. Nunca foram.
Os dois brasileiros já não eram os melhores amigos desde antes de Senna entrar na Fórmula 1. Em 1982, nos treinos para o GP da Bélgica, em Zolder (aliás, no dia em que Gilles Villeneuve e sua Ferrari se espatifaram, causando a morte do piloto canadense). Piquet, que fora o campeão do ano anterior, recebeu o brasileiro mais jovem no cockpit da Brabham. Um já era campeão consagrado, o outro ainda estava em ascensão. Isso rendeu a famosa frase, dita por Ayrton da Silva a Dennis Rushen, o chefe da equipe pela qual ele corria na F-2000 : "O cara me esnobou. Um dia, venço esse desgraçado".
Até onde eu me lembro de ter visto corridas dos anos 80, nunca vi Senna cumprir a promessa de vencer Piquet. Perdoem-me os "fodões". Por vezes, foi o contrário, como no GP da Hungria de 1986, a estonteante ultrapassagem do brasilsiense da Williams-Honda sobre o paulista da Lotus-Renault, onde usou-se de derrapagem para manter a posição. "Foi como fazer um loop com um Boeing 747", disse Jackie Stewart.
Em 1987, após ter ficado algum tempo fora dos holofotes e das câmeras após assinar contrato com a McLaren que teria os motores Honda que a Williams teve nesse ano (no qual, aliás, Piquet foi campeão, derrotando Nigel Mansell), Senna decidiu provocar Piquet.
Eu tinha que dar aos outros uma chance de aparecer um pouco. Afinal, não fazia sentido o cara ser tricampeão e eu continuar sendo assunto. Já que ninguém gosta muito dele, o único jeito era eu sumir para que ele pudesse aparecer um pouco. (RODRIGUES, Ernesto. 2004, p. 192)
Foram essas as palavras que Senna utilizou quando ficou de férias antes da temporada 1988, em que ele estrearia pela McLaren. Descascou a banana. Agora, teria de comer. E Piquet fez questão de fazer a coisa fluir ainda mais.
"Agora você não pode deixar de dizer que esse cara é veado." disse Peter Schultzwenkel, o Peta, filho de um dos sócios da Volkswagen, segundo Reginaldo Leme, já visto com desconfiança por Ayrton Senna.
Essa eu tenho que publicar em texto integral. Leiam abaixo os trechos do livro de Ernesto Rodrigues.
[...] Amigo é aquele que está do seu lado, mas quando vê a situação ficar séria sabe apaziguar e não botar fogo. Os amigos de Piquet fizeram o contrário.”O que Reginaldo chamou de "um surpreendente momento de falta de inteligência" de Piquet aconteceu quando a maioria dos jornalistas tinha ido almoçar no Carrefour da Barra da Tijuca, a alguns minutos de carro do autódromo. Eloir Maciel, um repórter do JB que cobria automobilismo com regularidade desde 1977, circulava pelo paddock e, ao passar em frente ao boxe da Lotus, viu Piquet almoçando ao lado da mulher, Katerine, e foi chamado. Quinze anos depois, Eloir reconstituiu o diálogo que começou com uma frase surpreendente de Nelson:
- Eu queria responder a esse filho-da-puta. vou dizer que ele é veado...
- Nelson, isso é sério. Se você disser, eu publico.
- Não. Não vou dizer que ele é veado porque não tenho como provar. Posso dizer que ele não gosta de mulher.
Eloir se lembrou das piadas de Alain Prost e dos comentários do próprio Piquet que vinham circulando entre os jornalistas sobre a presença constante de Américo Jacoto Júnior ao lado de Ayrton e sobre o fato de ele não aparecer com namoradas. E voltou a alertar:
- Nelson, se você disser que ele não gosta de mulher, eu vou publicar.
- Pode publicar...
Eloir pediu mais dados. Foi quando começou o que ele mais tarde considerou a "parte humilhante" da entrevista. Piquet chamou Katerine e ordenou:
- Diz aí quantas vezes você quis sair com o Ayrton Senna e ele não quis sair com você.
Katerine ficou constrangida, indecisa e, para Eloir, dando sinais claros de que não queria responder. E não houve resposta. Apenas vergonha e um grande desconforto. Na falta de um depoimento da mulher, Piquet se encarregou de dizer que Ayrton só andava com homens e que muitas mulheres queriam mas não conseguiam sair com ele. Eloir anotou tudo e, antes de ir embora, avisou mais uma vez:
- Nelson, isso vai dar uma merda que não tem tamanho amanhã.
- Se você não quiser publicar, então não publica.
Eloir respondeu que publicaria, mas reafirmou que a reportagem, embora refletisse boatos que realmente ocorriam, causaria muitos problemas. Os dois se despediram e Eloir seguiu direto para a redação do Jornal do Brasil. Passou por Sérgio Rodrigues e disse:
- Já tenho o lide de amanhã. Depois a gente conversa na redação. Também encontrou com uma colega do Estado de São Paulo e contou a história. A colega reagiu, assustada:
- E você vai colocar isso no jornal?
- Já coloquei...
Uma reunião informal foi realizada na redação ao Jornal do Brasil no início da noite, para decidir se o tiro de canhão de Piquet seria publicado. Participaram o editor de esportes, João Máximo, Sérgio
Rodrigues, o subeditor Vicente Senna e o repórter especial Mair Pena Neto. A questão não passou pelo "aquário" da redação, à época comandado por Marcos Sá Corrêa. Sérgio foi contra:
-Vamos tomar um furo, mas vamos manter a dignidade dessa cobertura. Isso é baixaria.
Mair concordou:
- Não tem significado jornalístico.
João Máximo não conhecia automobilismo, tinha uma falta de interesse absoluta pelo assunto e, 15 anos depois, disse que só se envolveu com a edição da réplica de Piquet porque a equipe ficou dividida: Eloir "um pouco do lado do Piquet", e Sérgio do outro, com Senna, "cada um do lado do seu respectivo entrevistado":
"Houve uma discussão sobre o aspecto ético de se publicar essa história, ainda que na boca do Piquet.” Na lembrança de Eloir Maciel, João Máximo recebeu com entusiasmo a reportagem e acrescentou à matéria a notícia sobre uma suposta ligação empresarial entre Senna e Galvão Bueno. João Máximo reescreveu o texto, mas, 15 anos depois, disse só ter usado informações surgidas na reunião que definiu o conteúdo da
matéria. O texto final, o próprio Eloir reconheceu, atenuou o "tom emocional" da reportagem original.
Antes de ir para casa, Eloir ainda recebeu de João Máximo a missão de tentar ouvir novamente Senna sobre a matéria que ia sair no dia seguinte. Pelo telefone, chegou a Armando Botelho, que, na lembrança de Eloir, "ficou para morrer":
- Eloir, não publica isso, pelo amor de Deus.
- Quem publica é o editor. Você quer falar com ele?
O telefone foi passado para João Máximo e, dez minutos depois da conversa, Eloir começou a receber telefonemas de colegas jornalistas. Acabou sendo chamado à sala do dono do jornal, Manoel Francisco Nascimento Brito, que queria conferir pessoalmente as circunstâncias da entrevista de Piquet. O assédio passou a ser tão intenso e os telefonemas tantos, que Eloir decidiu ir para casa. E lá, as ligações continuaram: amigos, colegas, gente da imprensa, todos pareciam ter a mesma pergunta na ponta da língua:
- Eloir, que merda é essa?
- Eu sou da notícia. A notícia está lá. Se não quiserem dar, o problema não é meu.
Coube a Sérgio Rodrigues a tarefa de ligar para Ayrton. Quem atendeu foi o anfitrião Galvão Bueno:
- O que você quer com ele?
Sérgio contou como seria a manchete com a resposta de Piquet. Galvão gelou e, de acordo com sua lembrança do episódio, reagiu com espanto:
- Cacete, isso vai dar uma cagada filha-da-puta. Becão, se vira aqui, porque o Sérgio Rodrigues está no
telefone dizendo que o Piquet disse que você é veado e que isso vai sair no JB amanhã. [...] (RODRIGUES, Ernesto, 2004, p194-196)
A coisa foi tão séria que até LGBTs se movimentaram a respeito do caso.
[...] A polêmica teve uma grande repercussão no país. Na sede da Torcida Ayrton Senna, no bairro de Santana, em São Paulo, o presidente da entidade, Adilson Almeida, viveu uma situação delicada ao receber um dos muitos telefonemas de solidariedade. Do outro lado da linha, um homem que se dizia porta-voz de uma entidade de homossexuais fez uma proposta:
- Nós podemos fazer um grande protesto em solidariedade.
- Como assim? Vocês querem fomentar ainda mais a discussão?
- Como fomentar?
- Você vai botar mais lenha na fogueira...
- Então você também tem preconceito?
- Não...
- Então nós temos de nos manifestar...
- Não, até porque a gente não considera o Ayrton gay.
- Então você tem preconceito. [...] (Rodrigues, Ernesto, 2004, p. 201)
E isso rendeu também uma defesa do Derek Warwick :
[...] O piloto Derek Warwick, que, vetado por Ayrton em 1986, teria algumas razões emocionais para se aproveitar do episódio, não acreditava nos boatos.E para quem perguntasse, ele tinha uma resposta curiosa,
relacionada ao fato de Senna ser amigo de Gerhard Berger, que Derek considerava um dos pilotos mais mulherengos da Fórmula 1:
"Se Ayrton é amigo de Gerhard, ele não é gay” [...] (RODRIGUES, Ernesto, 2004, p. 203)
Tudo foi esquecido, alguns anos depois, por Piquet.
[...] Mais alguns anos e Piquet resolveu simplesmente esquecer o que tinha dito a Eloir e confirmado diante de dezenas de repórteres, ao ditar para o amigo e jornalista Marcus Zamponi uma nova versão. Está na página 153 do livro Ayrton Senna, Saudade, escrito pelo jornalista português Francisco Santos e publicado em 1999, no Brasil, pela editora Edipromo:
"Em um teste de pneus no Rio de Janeiro, um repórter sem assunto para o dia veio me dizer que o Ayrton tinha falado isso e aquilo. Certamente o cara exagerava - o repórter, não o Ayrton... - e eu respondi algo como 'aquele veado já tá dando desculpa porque vou ser mais rápido do que ele'.
No dia seguinte o jornal punha em manchete que eu questionava a sexualidade de Senna. Um horror.”Ainda no depoimento a Zamponi, Piquet atropelou de vez: "Quem me conhece sabe o meu estilo e sabe muito bem que não sou homem de me preocupar com o que a outra pessoa pensa e faz em termos de sexo.” [...]
(RODRIGUES, Ernesto, 2004, p. 206).
Em 1991, Ayrton Senna fez um desabafo enorme sobre seus problemas com Alain Prost e, principalmente, Jean-Marie Balestre, em 1989.
Max Mosley ficou de queixo caído com a entrevista de Ayrton, às vésperas do GP da Austrália, em Adelaide.Foi o mais contundente, devastador, magoado e agressivo desabafo público jamais feito por um campeão de Fórmula 1.
As primeiras frases, aparentemente fortes, soaram diplomáticas no final: "Em 89, fui roubado feio pelo sistema e isso eu jamais esquecerei. Em 91, nós conseguimos um campeonato limpo, sem políticos. Foi um campeonato técnico e esportivo. Espero que isto seja um exemplo, não só para mim mesmo, mas para todos que competem na Fórmula 1 agora e no futuro também.”
Advertido por um repórter de que poderia ser novamente punido pelo que estava dizendo, Ayrton foi em frente: "Que se fodam as regras que dizem que não se pode dar opinião, que não se pode falar o que se está pensando, que não se tem autorização para dizer que alguém cometeu um engano, que alguém fez alguma coisa errada. Merda! Estamos num mundo moderno e somos pilotos profissionais.”Ao lado de Senna, na mesa da entrevista, Ron Dennis, perplexo, alternava um balançar impotente de cabeça com o cobrir incessante do rosto com as mãos, retratos de um enorme constrangimento.
E Senna continuou, considerando o título perdido em 1989 e as punições que se seguiram uma situação "imperdoável": "Eu ainda luto para aceitar aquilo quando penso a respeito. A briga dentro da equipe com Prost, as dificuldades com a FISA, com Balestre. Todos sabem o que aconteceu. Não houve justiça e o que aconteceu naquele inverno foi uma merda, uma merda mesmo.”
E chegou o momento em que Senna, por conta própria, disse que o que aconteceu em Suzuka, em 1990, na batida com Prost logo depois da largada, foi a forma que ele encontrou de provar que o que fizeram em 1989 tinha sido uma "má decisão": "Balestre deu ordem para não mudar a posição da pole. Aí eu disse: ok, a gente tenta trabalhar, tenta trabalhar limpo e fazer o trabalho direito e acaba se fodendo por causa de pessoas estúpidas. E eu disse pra mim mesmo: tudo bem, amanhã eu vou mostrar toda a verdade. Se na largada, por eu estar do lado errado, o Prost pular na frente e conseguir me tirar a posição, na primeira curva eu vou pra briga. E é melhor que ele não vire, porque não vai conseguir. E a coisa simplesmente aconteceu.”
Ron Dennis não sabia mais o que fazer com as mãos e a cabeça quando o repórter Mark Fogarty, do jornal USA Today, quis saber as razões de Senna para provocar deliberadamente o acidente. Ayrton ainda queria falar muito: "Por quê? Por que eu causei o acidente? Porque se você se fode cada vez que tenta fazer seu trabalho de modo limpo e correto, se o sistema te fode, se outras pessoas tentam se aproveitar disso, o que se deve fazer? Ficar atrás e dizer obrigado, sim, obrigado? Não! Temos de lutar pelo que achamos que é certo.”Os repórteres se entreolhavam incrédulos, alguns já sem saber qual seria a manchete principal entre tantas que estavam sendo despejadas por Senna naquela sala.
Um deles ligou outra tomada, pedindo que Ayrton falasse do pedido de desculpas que fizera a Balestre no início de 1990. Senna acabou fazendo uma revelação que deixou Ron Dennis quase em estado de choque: "Eu nunca pedi desculpas àquele cara, se vocês querem saber a verdade. Mudaram o press release. Mudaram o nosso acordo. Eles queriam um acordo. Eu não queria. Fui pressionado pelo Ron Dennis e pela Honda. Depois que eu aceitei um acordo em certas condições, eles mudaram os termos que eu tinha assinado o papel e mandado por fax. Eu nunca pude dizer essas coisas porque poderia perder a licença. Isso é uma merda, pura merda. E dói muito.” [...]
(RODRIGUES, Ernesto, 2004, p.359-361)
A reação de Piquet às declarações de Senna foi simples.
[...] "Ele descascou o pepino. Agora vai ter que comer." [...] (RODRIGUES, Ernesto, 2004, p.361)
Foram grandes pilotos, cada um de seu tempo. Deram várias alegrias aos torcedores. Mas, até onde sei, nunca foram amigos.
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