Sou fã de One Piece há praticamente dez anos. Não sou o consumidor mais ativo da franquia e nem o mais fiel, mas gosto bastante, tenho uns bonecos, comprei alguns mangás (dei a maior parte mas fiquei com o volume 1) e tive uma época onde maratonei o desenho e o quadrinho até mais ou menos o arco de Marineford e a reunião dos piratas após o Time-Skip. Depois disso, me cansei e fui procurar consumir outras coisas. A história estava ficando cada vez melhor e de fato ela evoluiu muito desde então, elevando a escala dos acontecimentos sempre mais, se aproveitando de uma ótima construção de mundo e um roteiro, na maior parte do tempo, muito bem estruturado, que permite que o autor, Eiichiro Oda, consiga criar novos elementos e reaproveitar personagens antigos de uma forma que quase nunca pareça forçada. Há problemáticas envolvidas na fórmula empregada pelo quadrinista nipônico, sendo a mais recorrente o fato de quase nenhum personagem ser morto fora de flashbacks (mesmo quando em alguns contextos a morte seria a consequência mais lógica possível como desdobramento para um acontecimento dramático) mas, em geral, Oda se sai muito bem no desenvolvimento de sua história.
Daí, neste ano, resolvi que iria voltar a ver o desenho de onde parei. Fiz uma pequena recapitulação ao assistir resumos das primeiras sagas, pois havia esquecido muitas coisas, e assisti ao arco de Impel Down e Marineford para me contextualizar. Passei pelo flashback familiar de Luffy, Ace e Sabo (que é divertido e prepara terreno para o futuro ao mesmo tempo em que contextualiza o passado dos irmãos) e a reunião dos piratas em Sabaody, que é morna, mas tem sua cota de diversão pela piada do Luffy falso. Finalmente eu estava pronto para continuar a viagem ao Novo Mundo que tanto foi antecipada.
Aí veio o arco da Ilha dos Homens-Peixe (também conhecido como "Ilha dos Tritões"... e tudo foi por água abaixo. Mas antes de começar a cagar na cabeça dessa história, cabe um contexto. Muitas sagas de One Piece são pura e simples encheção de linguiça, eu consigo digerir isso muito bem. Mas é incrível como esta aqui consegue reunir o que há de pior em narrativa. A premissa era excelente, o tema do racismo estava lá o tempo todo, com a quase sempre estremecida relação entre humanos e tritões. Esta claramente tinha potencial para ser um excelente saga.
O que encontramos aqui, porém, é um comercial de brinquedos que dura aproximadamente quarenta e poucos episódios. Eu não estou brincando, tem episódios em que, no meio de uma guerra contra cem mil pessoas (num dos exercícios de exposição mais safados que já vi, não tinha 100 mil pessoas ali nem fodendo), eles literalmente param o ritmo para mostrar Franky apresentando as novas armas do navio dos chapéus de palha, Thousand Sunny. É ver para crer. É divertido de ver, você até tem, momentaneamente, vontade de gritar empolgado com os personagens sobre como aquilo é foda, mas não tem uma função narrativa que não seja mostrar os novos brinquedos da coleção da Bandai.
Não há evolução dramática para os protagonistas, eles não enfrentam grandes dificuldades e o roteiro dá a entender o tempo todo que eles poderiam derrotar os inimigos a qualquer momento se quisessem, sendo boa parte dos episódios uma propaganda gigante para mostrar os novos visuais dos personagens e a evolução de seus poderes, que é de fato impressionante se comparada ao pré-timeskip. Um exemplo disso é que o tempo todo é estabelecido, através de diálogos e acontecimentos, que humanos são muito inferiores aos tritões em um combate na água. O que acontece aqui? Zoro luta contra Hody Jones na água e vence, deixando o tritão com um baita de um corte no peito, um ferimento que o incomoda em alguns momentos durante a sequência. E estamos falando de Zoro, aquele que, até então, é o segundo no comando dos Chapéus de Palha, colocando em dificuldades o vilão que seria o grande pivô do arco e que seria o obstáculo principal do próprio Luffy.
Para contornar isso, o roteiro simplesmente vai criando obstáculos artificiais e que não se sustentam por seus próprios méritos, ou fazendo os personagens tomarem decisões absurdamente idiotas que deixam os vilões em vantagem. Querem um exemplo? Luffy indo para a água para confrontar Jones na hora em que a arca gigante Noah está para atingir a ilha. Jinbe estava ali DO LADO, disposto a lutar contra a trupe de Hody, sendo a escolha óbvia para lidar com aquela situação, por ser o mais poderoso tritão em combate. Mas por que Luffy foi? Porque é o protagonista e porque o desenho precisa vender bonecos do personagem dando golpes especiais novos aprendidos no treinamento. É impressionante como essea história vende um climax falso e uma tensão não conquistada.
É difícil levar a sério como antagonista um vilão que claramente não tem a menor condição de impor grandes riscos aos protagonistas, e portanto não há muito pelo qual se temer, tornando a história incapaz de capturar a tensão do espectador/leitor. Se a periculosidade de Hody Jones já não é das maiores, como personagem ele não é muito melhor: apenas um pastiche do que já foi feito melhor antes (no caso, Arlong). Ele não tem ideais próprios, não tem nenhuma característica redimível e todo o desenvolvimento dele gira em torno de uma mentira. E o uso das tais drogas energéticas não tem consequência nenhuma, servindo apenas como Power-Up gratuito safado para fazer o vilão parecer mais difícil de derrotar do que parece.
Acham que acabou? Tolinhos... eu tô só começando.
Não sei ainda como estão os outros arcos neste aspecto, mas a Ilha dos Homens-Peixe pega a sexualização das personagens femininas e leva a um outro nível, produzindo quase sempre alguma piada envolvendo a tensão sexual. Temos aqui decotes enormes sempre em evidência e mostrados em planos fechados até mesmo em situações que são projetadas para serem tensas, o que quebra todo o ritmo. Há até um miniarco dramático envolvendo a perversão sexual de Sanji, que chega a quase morrer devido ao sangramento nasal (que é o substituto da ereção nos desenhos japoneses) e isso demanda uma transfusão de sangue desnecessariamente complicada, o que até serve para tocar superficialmente no ponto do preconceito existente entre tritões e humanos, mas não vai muito além.
Temos também aquela que talvez seja a personagem mais problemática de One Piece: a Princesa Shirahoshi. Também conhecida como uma das personagens mais chatas do desenho. Se essa menina existisse, ela resolveria todos os problemas hídricos do Ceará, encheria todos os açudes e acabaria com os problemas de seca que o estado enfrenta durante as estiagens de fim de ano. Quase tudo o que acontece faz essa garota chorar feito um bebezão. Felizmente, Oda parece saber disso e logo faz de Luffy a expressão mais sincera e franca do próprio público, fazendo o capitão dos Chapéus de Palha falar na lata: "você é grande, mas é covarde e uma bebê chorona, eu não gosto de você". Ao mesmo tempo, o roteiro tenta redimir a personagem durante os momentos difíceis, fazendo ela ter alguma agência no clímax, e ela se prova menos medrosa e chorona no final, mas até ali você já tem raiva estabelecida em relação a personagem, e uma raiva bem justificável, por sinal.
E como se não fosse suficiente, a personagem tem uma codificação estética audiovisual cheia de pedofilia embutida (eu sei que vozes agudas em mulheres são uma constante nos desenhos japoneses, mas a de Shirahoshi abusa) e parte do arco dramático dela se desenvolve devido às ameaças do vilão secundário do arco, Vander Decken. Esse personagem é completamente imbecil e estraga completamente o que seria o capitão do lendário Holandês Voador, no que talvez seja uma da maiores oportunidades perdidas na história. E para completar essa montanha de merda com uma cereja de bosta, um dos flashbacks deixa muito, muito claro que a relação não correspondida entre Decken e Shirahoshi se dá em meio a uma conotação cheia de pedofilia, com o vilão se "apaixonando" pela princesa quando esta ainda era uma criança e a perseguindo violentamente até a idade adulta, o que fez com que ela fosse trancada em uma torre por dez anos. É uma das piores coisas que eu já li, tira de Shirahoshi qualquer possibilidade de agência própria e só faz com que ela seja a donzela em perigo durante a maior parte da saga. Shirahoshi é uma péssima personagem e está perigosamente perto de ser um material de regozijo para pedófilos, seja pelo seu visual e maneirismos ou pela forma como é assediada desde criança. Ao menos o quadrinista não dá a Decken nenhuma característica redimível, é um personagem nojento a quem devemos odiar e ponto. Felizmente isso o roteiro consegue com louvor.
A única coisa que eu poderia chamar de positiva neste arco é o flashback com Fisher Tiger e a Rainha Otohime, que são objetivamente bons personagens que delineiam dois arquétipos: a heroína virtuosa que acredita no bem das pessoas até o fim, e o herói trágico, porém bem intencionado, que é durão, mas possui honra e determinação implacáveis. O arco também mostra um jovem Arlong antes dos eventos da saga Arlong Park, nos quais ele oprime completamente a Vila Cocoyasi, terra natal de Nami, além de bons desenvolvimentos de personagens como Jinbe e Hachi, aparições de personagens conhecidos e a introdução de outros que veremos no futuro.
No fim, Ilha dos Homens-Peixe é uma bosta. Não tem meias palavras, é ruim, bizarro, mal escrito, desnecessariamente longo, atua como comercial de brinquedos em boa parte do tempo e só atrasa a ida dos Chapéus de Palha ao Novo Mundo. Não tem consistência narrativa, não consegue aproveitar direito a boa premissa que cria e ainda tem elementos problemáticos incômodos pra caralho.
Felizmente já me alertaram que alguns arcos posteriores são bem melhores. Que sejam.