quarta-feira, 29 de julho de 2015

Sobre penitência e redenção

Sebastian Vettel, Ferrari

Sabem aquelas coisas que você se arrepende pelo resto da vida de ter perdido?

Talvez este seja o caso de ter perdido a chance de ver o Grande Prêmio da Hungria de 2015 ao vivo.

O que é perfeitamente compreensível, dadas as circunstâncias estabelecidas após a classificação de sábado, ainda somadas ao histórico ruim do país na Fórmula 1 no tangente à emoção das corridas.

Tivemos as duas Mercedes largando na frente numa pista em que é praticamente impossível de ultrapassar. As Mercedes não quebram e quando o calor não é realmente extremo, como na Malásia, não perderiam por isso.

O normal seria uma vitória com dobradinha da equipe alemã, Vettel beliscando um pódio, o que é o padrão da Ferrari e as Red Bull se metendo ali nas posições intermediárias do pelotão devido ao seu carro, aerodinamicamente muito bom e com baixa exigência de potência no sinuoso circuito, que é comumente comparado a Mônaco por suas curvas de média e baixa velocidade.

Some isso ao clima de pesar pela morte de Jules Bianchi. Não sei. Os pilotos poderiam pensar nisso como um "limitador" para suas ações no GP, vez que tinham sido lembrados recentemente e da pior maneira possível que aquele era um esporte perigoso e, eventualmente, fatal: A morte de um colega de profissão. E tão próximo como Jules era.

Mas o improvável aconteceu. E em várias situações do GP.

Sobressaiu-se o melhor piloto, o maior talento, aquele que conseguiu somar da maneira mais expressiva a coisa mais importante neste ramo de corridas de carro: Resiliência.

Moleque relativamente novo para os padrões da Fórmula 1, 28 anos, o maior recordista precoce da história da categoria, sujeito boa-praça e que, se outrora bastante ojerizado, hoje vem ganhando a simpatia e a complacência dos que o cercam. 

E atende pelo nome de Sebastian Vettel.

Ora, numa época em que a Fórmula 1 vive uma daquelas eras de dominância tão absoluta que chega a ser absurda, este alemão simplesmente foi soberano, tendo apresentado um desempenho que nos remete mais aos bons e velhos tempos de Michael Schumacher na Ferrari. 

Tanto que, enquanto escrevia esse pequeno texto - ou seja, um testículo - eu pensei em algo interessante e especial.

É bem verdade que a vitória de Vettel em Hungaroring tem muito do Grande Prêmio da Itália de 2000. Alemão, piloto da Ferrari, alcançou sua 41ª vitória - igualando Ayrton Senna - em meio ao profundo luto. Momento similar vimos 15 anos antes, mesmo, com Michael Schumacher. A morte de Paolo Ghislimberti, fiscal de pista, aterrou a todos os presentes, fazendo o tedesco cair a um incontido pranto na coletiva de imprensa.

Mas também tem muito do Grande Prêmio da Hungria de 1998. À época. Schumacher dava o sangue para enfrentar as poderosas McLaren-Mercedes de Mika Hakkinen e David Coulthard e utilizou de estratégia magistral de três paradas e um ritmo cirúrgico para bater os velozes bólidos de Woking. Um dos mais célebres triunfos de Michael e de Maranello.

Vettel foi perfeito desde a largada. Aproveitou as pobres arrancadas de seus adversários, Lewis Hamilton e Nico Rosberg, e controlou a corrida até o fim, praticamente sem ser ameaçado. Teve a companhia de uma velha conhecida dele mesmo e daquele lugar de glória, o pódio: A Red Bull. Daniil Kvyat e Daniel Ricciardo, como dito, se aproveitando da baixa cobrança de potência de Hungaroring para galgar duas posições no pódio. 

Tivemos então um pódio sem presença de motor Mercedes e sem algum piloto da equipe Mercedes - efeméride não vista desde, o GP do Brasil, ambos em 2013.

O alemão contou ainda com os vacilos dos dois principais rivais. Hamilton fez uma corrida totalmente errática. Seus momentos de impaciência estão se tornando cada vez frequentes. Os vacilos em Silverstone quando perdeu a liderança para a Williams na largada mostraram isso. Já Rosberg foi totalmente inexpressivo. Sexta e oitava posições para carros que tem obrigação de ganhar com 1-2. Uma tragédia para os alemães, em síntese. E o pior é que, com uma corrida de tantos erros para Hamilton, o tedesco Rosberg poderia aproximar-se bastante no campeonato. Mas sua estratégia errada em relação à Red Bull acabou com esse sonho e o relegou a terminar duas posições atrás do companheiro, aumentando a vantagem de Lewis para 21 pontos. 

O tricampeonato de Hamilton vem aí, tanto pela sua superioridade em relação a Rosberg em praticamente todos os sentidos quanto pelas circunstâncias em volta dos dois.

Destacar-se deve também outras performances espetaculares: A presença maciça da McLaren-Honda na zona de pontuação, com o praticamente inacreditável quinto lugar de Fernando Alonso e o nono lugar de Jenson Button. Beneficiados pelos infortúnios e quebras de seus adversários e por uma pista onde as ultrapassagens são praticamente impossíveis, os dois galgaram posições. Ressalte-se que Alonso terminou à frente das duas Mercedes, para que se ratifique o teor de anormalidade deste Grande Prêmio.

E, claro, o quarto lugar de Max Verstappen, relembrando a boa performance do seu pai 21 anos antes, com o pódio do GP da Hungria de 1994. O garoto é bom e merece estar onde está. Tem cometido erros próprios a um principiante nas últimas corridas, mas de um modo geral, o holandês vem mostrando que entende do riscado.

Não poderia terminar esse texto, porém, sem um agradecimento especial a Sebastian Vettel. 

Essa vitória espetacular só não foi mais emocionante do que suas palavras no rádio. Primeiro, agradeceu de forma apaixonada aos seus companheiros na Ferrari. 

Depois, despediu-se de Jules Bianchi da forma mais apropriada: em francês C'est. Uma digníssima homenagem.

Enfim... A penitência ao escrever este texto é porque não vi a corrida ao vivo. As emoções que eu teria sentido se tivesse assistido seriam incomensuráveis.

Mas vida que segue.

Danke, Sebastian.

Au revoir, Jules.

Race winner Sebastian Vettel, Ferrari

Resultados:

1. Vettel (ALE/Ferrari) - 69 voltas em 1h46min09s985
2. Kvyat (RUS/Red Bull Racing-Renault) + 15s748
3. Ricciardo (AUS/Red Bull Racing-Renault + 25s084
4. Verstappen (HOL/Scuderia Toro Rosso-Renault) + 44s251
5. Alonso (ESP/McLaren-Honda) + 49s079s
6. Hamilton (ING/Mercedes) + 52s025
7. Grosjean (FRA/Lotus-Mercedes) + 58s578
8. Rosberg (ALE/Mercedes) + 58s876
9. Button (ING/McLaren-Honda) + 67s028
10. Ericsson (SUE/Sauber-Ferrari) + 69s130
11. Nasr (BRA/Sauber-Ferrari) + 73s458
12. Massa (BRA/Williams-Mercedes) + 74s278
13. Bottas (FIN/Williams-Mercedes) + 80s228
14. Maldonado (VEN/Lotus-Mercedes) + 85s142
15. Merhi (ESP/Manor-Ferrari) + 2 voltas

Abandonos
Stevens (ING/Manor-Ferrari) - suspensão
Sainz Jr. (ESP/Scuderia Toro Rosso-Ferrari) - pressão de combustível
Raikkonen (FIN/Ferrari) - motor
Pérez (MEX/Force India-Mercedes) - freios
Hulkenberg (ALE/Force India-Mercedes) - acidente

sábado, 18 de julho de 2015

Sobre deixar ir


A Fórmula 1 ficou um pouco mais triste hoje.

A tristeza que me invadiu no momento em que soube que Jules Bianchi havia morrido, porém, não foi tão grande assim. 

Pode parecer insensível, mas é verdade.

Era algo que aconteceria mesmo, mais dia, menos dia.

As chances de o francês sobreviver eram reduzidas, dadas as lesões cerebrais sofridas. Bianchi havia sofrido lesão axonal difusa durante o Grande Prêmio do Japão de 2014, no circuito de Suzuka. O prognóstico não era dos melhores. Caso sobrevivesse, sua vida se reduziria a um estado vegetativo permanente.

Lamentei sua morte. Estou lamentando agora, enquanto escrevo estas efêmeras linhas.

Mas a tristeza não foi maior do que o alívio. Sim, alívio.

Porque a luta de Jules pela vida incorria em inúmeras situações de sofrimento, tanto para o piloto quanto para sua família. 

Ao encontrar-se com o único mal irremediável deste mundo, Bianchi finalmente encontrou o descanso. Sua família, idem. Assim como o mundo do automobilismo, que perdeu um de seus mais leais e apaixonados participantes.

Chorei quando Bianchi marcou os sofridos dois pontos com a sofrível Marussia no GP de Mônaco de 2014. O tinha na mais alta estima. Torcia para que suas conquistas subsequentes fossem maiores, a bordo, talvez, de um carro melhor. Porque com a Marussia realmente não dava para fazer mais do que se esgoelar para marcar dois pontinhos em Mônaco.

Jules já vinha sendo sondado pela Ferrari para um cockpit em 2015. Era um fiel membro da academia de jovens pilotos de Maranello, o jovem gaulês.

Talentosíssimo. Com fome de vencer. Este era Jules Bianchi.

Mas é difícil para muitos deixá-lo ir embora agora, jovem e com uma vida inteira potencialmente vitoriosa pela frente tendo que ser grosseiramente riscada.

Sim, eu entendo. 

Deixar ir soa, num primeiro momento, desesperador.

Deixar ir. Aí está uma coisa que, em geral, não sabemos fazer. 

Geralmente as pessoas tentam evitar a morte das outras, mas mais pelo sentimento que elas mesmas nutrem do que pelos sentimentos, vontades ou o estado de saúde dos seus objetos de estima.

Deixar ir. Eis uma virtude que todos deveríamos tentar cultivar.

A família de Jules Bianchi aprendeu e deixou seu filho pródigo descansar em paz.

Cumpriu sua sentença. Encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo, morre. 

(Ariano Suassuna em O Auto da Compadecida)

segunda-feira, 6 de julho de 2015

Sobre a equipe que não é equipe

É oficial: Está tudo errado com a Williams.

Tudo. Tudo mesmo.

A polêmica do GP da Inglaterra girou em torno dos altos e baixos da equipe inglesa no final de semana passado.

Foi o time que mais evoluiu em relação aos finais de semana anteriores. Superou a Ferrari com seus dois carros na classificação. Um desempenho surpreendente. Felipe Massa e Valtteri Bottas ocuparam a terceira e quarta posições no grid.

Na largada, a vacilada das Mercedes e a bela arrancada de Massa deram à Williams a chance de liderar com seus DOIS carros. Algo que não acontecia, provavelmente, desde o GP da Áustria do ano passado, quando Massa foi o único pole-position com um carro não-Mercedes. Aliás, dobradinha da Williams naquele treino.

Voltando a Silverstone-2015, a equipe começou muito bem a prova, mas sofreu ao longo das 52 voltas com seus próprios erros, sejam eles de estratégia e das paradas nos boxes. Uma visão de corrida conservadora e pessimista, que fez com que o time não perdesse somente a liderança da prova para a Mercedes, mas também o pódio para a Ferrari do alemão Sebastian Vettel. 

Uma espécie de reembolso pelo pódio que os vermelhos perderam na corrida anterior? Talvez, mas não proposital, obviamente.

O que importa é que o time jogou suas chances de uma eventual vitória ou pódio garantidos porque pensou como uma equipe medíocre. Exatamente a mesma coisa que aconteceu no GP da Áustria de 2014, quando Massa, tendo largado em primeiro, nem pódio conquistou.

Mas antes a equipe tivesse ficado só nos erros da pista. O time de Grove definitivamente desaprendeu a pensar como equipe grande.

Por um lado, os pilotos culparam a equipe pelos erros de estratégia. Bottas ainda foi mais enfático e disse acreditar que teria mais chances se tivesse ultrapassado Massa. A equipe, por sua vez, preferiu lavar as mãos e jogar a peteca de volta para os pilotos, dizendo que eles é que tem que sentir o momento certo da parada.

Provavelmente cada um deles está certo. Sobre a versão de Bottas, tenho minhas dúvidas. Para mim, o que mudaria seria apenas a ordem de carros a serem ultrapassados pelas Mercedes.

O problema está na forma como isso aconteceu. O problema, meus caros leitores e leitoras, está em sabermos disso tudo. 

Pilotos e time lavaram a roupa suja na imprensa. Não souberam se resolver internamente. Um jogou a culpa no outro, basicamente. Não houve unidade. Não houve pensamento de equipe.

Todos estão errados.

A Williams, se quiser voltar a ser grande de verdade, precisa voltar a ser uma equipe de grandes decisões e, principalmente, saber lidar melhor com o ímpeto dos pilotos.

O problema é que esse tipo de problema entre pilotos não é algo novo em Grove. A tempestuosa dupla Juan Pablo Montoya e Ralf Schumacher, de 2001 a 2004, embora composta de ótimos pilotos, não deixa saudades no time.

Aliás, a mesma Williams perdeu o campeonato de pilotos e construtores em 2003 porque não soube lidar com isso. Carro para isso ela tinha. E estava brigando pelo caneco das equipes com a Ferrari, ponto por ponto.

O último ano do time de Frank Williams como uma GRANDE, de fato e de direito, foi 1997. Depois, como equipe forte, foi até 2004. 

Saudades dessa época. 

sexta-feira, 3 de julho de 2015

Sobre reflexões e longas profundos: Martyrs

Quanto horror somos capazes de suportar?

Então.

Esse, provavelmente, será o primeiro texto deste blog em que realmente não discorrerei sobre carros ou motos correndo. 

E também não tocarei no assunto "automobilismo".

É isso aí. Este blog é meu e escrevo a merda que eu quiser. Já disse isso antes e, neste artigo, isso se fará ainda mais claro do que antes.

Mas há um motivo muito bom para fazê-lo, isso eu garanto.

Sabem, há coisa de 2 ou 3 semanas, conheci uma moça chamada Patrícia. Conversamos e nos entendemos muito bem até aqui. E ela me indicou um longa para que eu assistisse: O thriller "Martyrs", um filme francês, datado de 2008 e com direção de Pascal Laugier. Um filme que me surpreendeu mais do que qualquer outro jamais o fizera. Ao longo de meus efêmeros 22 anos, porém, além de Martyrs, somente outro filme hoje tem de mim a devida admiração pela profundidade mostrada. Talvez eu ainda discorra sobre este longa noutro texto. 

Deixo clara aqui uma coisa: Quem estiver a ler esse texto não deve esperar uma crítica de cinema, com análise do roteiro, atuação dos atores e atrizes, nada. Aqui discorrerei sobre as inúmeras reflexões que este filme causa.

Outro aviso: Não me absterei de contar "spoilers". Então, se quiserem ver o filme antes de ler meu texto, estejam à vontade para fazê-lo agora. E não reclamem depois se tiverem lido o texto sem assistir ao longa.

A questão do começo continua. Quanto horror somos capazes de suportar?

Vejam o filme e descubram por vocês mesmos.

Sem mais delongas, vamos a ele.

O filme "Martyrs" é, sem dúvida, uma masterpiece, pois nos faz, gradativamente, compreender todo um esquema de exploração do sofrimento alheio, mantido pela personagem apenas referida como "Mademoiselle" (Catherine Bégin).

Primeiro estágio gradativo - horror

O filme começou com sequências assustadoras, de fato, e faz jus ao gênero. E ele não deu trégua, o horror está presente durante quase toda a fita, ao menos durante 40 ou 50 minutos desde o começo. 

A protagonista, uma jovem criança chamada Lucie Jurin (Mylène Jampanoï), fugiu de uma carceragem onde era mantida presa, sem contato com o mundo exterior, sentada e acorrentada numa cadeira, onde sofria abusos físicos constantes. A menina foi hospedada em um orfanato e conheceu Anna Assaoui (Erika Scott). Mas as coisas pareciam não estar bem para Lucie, pois ela era aterrorizada por uma criatura medonha, em forma de mulher, cheia de retalhos e cicatrizes.

15 anos depois, a jovem Lucie havia crescido e foi até a casa dos Belfond, uma família aparentemente comum e normal. Chacinou a família inteira com uma escopeta. Lucie, porém, sabia o que estava fazendo. Os Belfond, acreditava ela, eram responsáveis pelo abuso que ela havia sofrido na infância. Ao mesmo tempo, Lucie constantemente era assombrada tanto pela mulher desfigurada quanto pelo passado sombrio por ela vivido no cárcere de quinze anos antes. Toda aquela situação parecia assustadora, de fato, pois a mulher a agredia fisicamente e os flashbacks eram um boicote psicológico. Junto dela, também estava Anna Assaoui, sua colega de orfanato e agora parceira num relacionamento amoroso. 

Até então, pensamos que a mulher retalhada era alguma entidade demoníaca a quem Lucie e Anna serviam e para quem deveriam entregar pessoas mortas, para satisfazer sua fome de sangue. Ou ao menos era a pista que parecia ser dada para mim. 

Segundo estágio gradativo - indignação.

Neste estágio, descobrimos que tudo o que Lucie sofreu no seu cárcere era, na verdade, uma atividade financiada por alguma organização poderosa. 

Gabrielle Belfond estava viva e acordou junto aos cadáveres de seus familiares. Lucie não a havia matado de fato. Anna tentou protegê-la, mas acabou sendo inútil. Lucie terminou o que havia começado, matando-a com pauladas na cabeça. Depois, começou a se ferir e se machucar propositalmente, num estado psicótico. Descobrimos então que a mulher retalhada que atormentava Lucie era, na verdade, uma projeção de seus maiores medos, desencadeada com o sofrimento pelo qual ela havia passado. A própria, obviamente, não tinha consciência disso, e seu comportamento psicótico a colocou contra Anna. Lucie já não aguentava mais aquilo e rasgou a própria garganta, tentando se livrar do sofrimento com a morte.

Anna ficou atormentada com a carnificina que vira naquela casa. Mas conseguiu dormir. No dia seguinte, descobriu um porão dentro de um armário de cozinha (pode não ser um armário de cozinha, mas é o que eu lembro, então, paciência). O porão dava para um corredor macabro, com imagens de criaturas humanas em estados deploráveis.

Ao final do corredor, uma escada que levava  para um compartimento subterrâneo. Anna desceu as escadas e se deparou com uma sala sombria, com uma cadeira. Abaixo, um buraco com um balde, que provavelmente servia para as necessidades fisiológicas da moça que estava sentada na cadeira, Sarah. Ela estava muito magra e tinha uma venda de metal nos olhos, assim como uma barra de metal acoplada em sua cintura. Anna a tirou dali e tentou cuidar de seus ferimentos e banhá-la, mas não adiantou. 

A menina parecia sofrer do mesmo problema de Lucie. Ao invés de uma mulher retalhada, porém, Sarah via insetos. E os insetos tentavam devorá-la. Sarah tentou usar um facão de cozinha para cortar o próprio braço e impedir que os insetos lhe devorassem por inteira. Contudo, um grupo de homens e mulheres de preto organizados e armados adentraram a casa e mataram Sarah. Então, uma deles abordou Anna e a interrogou sem dar tempo para que ela se explicasse. 

Então, a levou para dentro do porão através do armário. Enquanto isso, colocaram uma mesa e cadeiras, sentaram Anna em uma delas e a outra serviu para uma senhora idosa que apareceu dentro do porão, diante de todos. Ela sentou-se de frente para Anna e falou-lhe de Lucie Jurin, sobre sua fuga do cárcere 15 anos antes. Explicou-lhe que ela havia fugido numa época em que seu pessoal não era tão organizado. Então, explicou como seu objetivo centralizava na em trancar mulheres em situações de crueldade extrema para extrair seu sofrimento e torná-las verdadeiras mártires. E que já haviam feito os mesmos tipos de experimentos antes com homens e crianças, mas os resultados não eram tão "promissores" quanto os das mulheres. Mas a maioria, segundo ela, havia enlouquecido e enfrentado seus piores medos em comportamentos psicóticos.

Até aquele momento, era impossível não lembrar dos métodos cruéis mostrados em filmes como "Jogos Mortais" e "O Albergue", por exemplo, ainda mais porque a busca pelo sofrimento alheio parecia fútil e simplesmente cruel e sádica como no segundo. A indignação atingiu níveis alarmantes em meus olhos e pensamento.

Terceiro estágio gradativo - transcendência

Impossível não sentir seu senso de justiça ser tremendamente violado até esse momento do filme, a menos que você seja um(a) sádico ou que seja indiferente ao sofrimento, isso partindo do pressuposto que você se envolveu com o filme como eu me envolvi. É preciso certa dose de sensibilidade, eu diria.

A idosa também explicou a Anna que o mundo em que vivemos está repleto de vítimas, de pessoas que sucumbiam ante às dificuldades. E que mártires eram raros. A mensagem é forte e é verdadeira, mas em meio ao clima tenso e horroroso da primeira hora do filme, é virtualmente impossível absorver a essência daquilo, a menos que sua psiquê tenha adquirido proporções divinas.

Terminada a conversa, Anna foi nocauteada e levada até o compartimento abaixo deles pelas escadas. Foi sentada e acorrentada na cadeira e começou com sua sina de sofrimento. Era questão de tempo até enlouquecer como as outras a cada gota de dor extraída de seu interior. Então, seus dias ali dentro passaram a ser intercalações entre alimentação, abusos físicos, limpeza do corpo e remoção dos resíduos fisiológicos do balde onde ela fazia suas necessidades. Tudo feito de forma rudimentar enquanto ela tentasse resistir ao sofrimento que lhe era imposto.

Todas até este estágio haviam enlouquecido. Era só questão de tempo até Anna sofrer com uma psicose também. Com os abusos físicos, Anna teve a face desfigurada. Seu corpo idem. Seu cabelo foi totalmente cortado. O que restou de Anna foi apenas uma coisa: Lucidez. Ela não enlouqueceu. Começava a entender o motivo pelo qual ali estava. Que não deveria resistir à dor, que deveria aceitá-la de bom grado. Seu comportamento não se tornou psicótico. E a dor já não era sentida da mesma maneira.

A organização percebeu isso. Anna já não era mais uma sofredora qualquer. Ela poderia servir ao verdadeiro propósito. Foi o que pensou Mademoiselle, creio eu. Anna foi então levada a uma outra máquina. O sofrimento iria acabar, disso Anna era avisada. Ela havia chegado ao estágio final daquele calvário. Um cirurgião então retirou toda sua pele, deixando todo o seu corpo apenas em carne viva, deixando apenas seu rosto sob a pele. Mesmo assim, o horror já havia sido completamente substituído por uma espécie de drama. Mas Anna, mesmo quase imolada, não estava morta. 

Seus olhos brilhavam. Seu estado quase transcendente chamou a atenção de todos ali. Tanto Mademoiselle quanto outros idosos foram convocados a comparecer naquele local. Mademoiselle chega a tempo de falar com Anna, que, em seu estado de transcendência, conseguiu comunicar-se com a idosa a fim de lhe falar sobre o que estava vendo. Era o outro mundo, o que há depois da morte.

O assistente de Mademoiselle, Etienne, começa a falar para todos os presentes sobre o resultado da martirização de Anna. Mencionou que, em décadas de experimentos, apenas quatro mulheres haviam sido martirizadas com sucesso, mas todas morreram sem compartilhar o que tinham visto. Anna Assaoui foi a primeira. 

Etienne então perguntou à Mademoiselle se o que Anna vira era claro e preciso. Ela confirmou e logo depois perguntou a ele se ele poderia imaginar o que vinha após a morte. Ao passo que ele disse "não", Mademoiselle disse "continue imaginando" e se matou, finalizando assim a história do longa.

Mas este final dramático, junto com a mensagem de Mademoiselle enquanto conversava com Anna antes de a mesma ser martirizada, nos deixa clara uma coisa: Martyrs não é um mero filme de horror gratuito e tampouco uma história que meramente retrata a injustiça da crueldade que extraiu o sofrimento de uma jovem inocente.

Martyrs é um filme profundo, cruel com o expectador, mas ao mesmo tempo o leva ao limite para treinar sua resiliência. Ele mostra, de uma maneira brutal, o quanto a sociedade é fraca. O quanto as pessoas são fracas. Num mundo povoado por maricas, por vítimas, pessoas que praticamente não suportam suas sinas, são parcela rara da humanidade aqueles que atravessam dificuldades com resiliência. E são poucos os seres sobre a terra que conseguem transcender devido à suplantação das dificuldades, os que se elevam em relação ao que eram antes de enfrentarem verdadeiros calvários. Foi o caso de Anna Assaoui. Não é à toa que apenas cinco mulheres, contando com Anna, foram martirizadas. Não é à toa que só Anna viveu o suficiente para ver e partilhar o que via.

As sinas, porém, não precisam ser similares às do filme. Anna passou pelo pior teste de resiliência que poderia passar: o do sofrimento extremo. No nosso dia-a-dia, essa superação pode ser em relação a limites que queiramos superar em nós mesmos, sem necessariamente comportar dor similar. Vejam meu caso. Desenho desde que me entendo por gente. E quando era pequeno, não imaginava que iria desenhar tão bem quanto desenho hoje. Foi uma forma de transcender-me sobre mim mesmo. E há outras formas, que vocês devem descobrir por vocês mesmos também.

A mensagem do filme se camufla sob o horror. E compreendê-la é, por si só, uma forma de transcender nossos limites, a forma como vemos a dor e como conseguimos nos manter atentos ao que acontece sob seus efeitos, ora alucinantes, ora destrutivos. 

Permanece a questão antes de toda essa longa reflexão: 

Quanto horror somos capazes de suportar?