sexta-feira, 21 de junho de 2024

Mônaco-1984: uma vitória tirada de Senna? Reflexões sobre responsabilidade e segurança no esporte a motor

Faz tempo que não escrevo nesse blog, e sinceramente não sinto saudades de fazê-lo. O tempo é curto, o dinheiro não vai se ganhar sozinho e o fato é que eu estou, há muito tempo, sem tanta inspiração para a escrita. 

Jamais eu teria encontrado
isso aqui na Amazon, hoje
responsável por praticamente
destruir o comércio nacional de livros

Este blog começou como um lugar onde eu escrevia exclusivamente sobre automobilismo. E jamais voltará a ser assim. Pois o mundo mudou, e eu mudei com ele. O automobilismo era, para mim, um hiperfoco gigantesco. Para quem me conhece, sou autista nível 1 de suporte. Para pessoas como nós, é muito fácil cair em hiperfocos que tomam literalmente todo o nosso tempo e dominam a nossa mente de tal forma que só queremos saber daquilo. Hiperfoco, aliás, que foi muito forte em minha infância e adolescência quando se trata de automobilismo, em especial, a Fórmula 1. Na foto ao lado, um anuário que encontrei recentemente, que deu uma reacendida em meu hiperfoco nos últimos dias. Felizmente, de uma maneira bem menos destrutiva para mim do que havia sido em meu período mais infante.

Mas enfim, isso tudo é uma grande embromação pra tornar o texto um pouquinho maior, e fazer as pessoas ficarem um pouco mais de tempo neste espaço. 

Brincadeira. Ou não. Risos.

Ao assunto do título, pois.



O Grande Prêmio de Mônaco de 1984 entrou para a história do automobilismo.

E não é para menos. É uma corrida absolutamente histórica, que apresentou ao mundo dois talentos gigantescos, duas promessas do que seria a Fórmula 1 na segunda metade dos anos 80 em diante.

Ayrton Senna e Stefan Bellof, naquela tarde diluvial, apresentaram seus cartões de visitas ao mundo, e vinham demolindo meio grid rumo à liderança do Grand Prix. O mundo estava boquiaberto ao ver como Senna, no molhado, ao volante da relativamente modesta Toleman (já falarei sobre este "relativamente"), vinha jambrolhando o grid, com direito a uma ultrapassagem por fora na entrada da Saint Devote sobre Niki Lauda. Bellof, por sua vez, vinha também fazendo corrida brilhante, e era o carro mais veloz da pista quando a prova foi encerrada. 

Falarei isso baixinho aqui pra vocês... mais rápido que Ayrton, inclusive.

Cabe dizer que o carro de Senna podia não ser nenhuma brastemp, mas foi projetado por ninguém menos que Rory Byrne e Pat Symonds. Byrne se consagrou com as Ferrari de Michael Schumacher anos depois, e Symonds se tornou o projetista responsável pelas Renault dos dois títulos de Fernando Alonso. Além disso, era empurrado pelo motor Hart 415T, que, de acordo com o blog britânico Stavtech nesse texto aqui, em 1984 poderia chegar a 800 cavalos, o que não era um déficit tão grande se comparado a outros times da época.

Quando a corrida se aproximava das voltas 30 a 31, Alain Prost, da McLaren-TAG Porsche, que havia largado da pole, acenava aos boxes, solicitando à direção de prova que a corrida fosse encerrada, pois em sua visão, não havia condições para continuar. O diretor de prova, Jacky Ickx, encerrou a contenda no 31º giro. Ao encerrar a prova em bandeira vermelha, valiam os resultados da volta anterior, e por isso, a vitória ficou com Prost, com Senna em segundo e Bellof em terceiro (depois, o alemão seria desclassificado, pois as Tyrrell estavam abaixo do peso). Resultado que, por ironia do destino, fez Prost perder o campeonato mundial para Lauda por meio ponto. Risos.


A impressão geral que ficou deste resultado foi de certa revolta passivo-agressiva em relação a esse desfecho, com requintes de teoria da conspiração e meias-verdades que deram tônus muscular à tese de que o regulamento teria sido ma
nipulado para dar a vitória a Prost, McLaren e Porsche (a fornecedora de motores do carro do francês). E quando você junta todos estes fatores, tudo faz muito sentido. Ora, Jacky Ickx era um piloto histórico da marca alemã no Mundial de Endurance, tendo vencido as 24 Horas de Le Mans seis vezes, quatro delas pilotando carros históricos da esquadra de Stuttgart, como o 936 e o 956. A McLaren era já estabelecida como um time tradicional na Fórmula 1, com títulos de Emerson Fittipaldi e James Hunt em anos anteriores. Prost era francês, sendo Mônaco um principado que ficava muito próximo do território francês. E, claro, havia Jean-Marie Balestre, o protótipo de ditador, que tinha relação extremamente próxima do piloto da McLaren, e que nos anos seguintes, seria o carrasco da decisão de 1989 que favoreceu o tricampeonato de Prost após a batida proposital em Senna. E não ajudou o fato de que em 1996, Balestre ter declarado à imprensa que teria dado uma "ajudinha" para Prost levar o caneco na disputa contra o brasileiro.

Tudo isso deixou o imaginário popular brasileiro muito suscetível à ideia de que Ayrton Senna deveria ter sete vitórias no GP de Mônaco, e não teve porque a cartolagem na categoria jogou a favor de Prost.

Mas será que foi realmente isso? Será mesmo que todos estes fatores esgotam o assunto?

Em minha visão, não. E esta é a razão de esse texto existir.

Em primeiro lugar, uma pequena nota de rodapé no meio do texto, pois quero tirar o meu da reta. Não sou um "hater" de Ayrton Senna. Admiro o legado do brasileiro, um dos maiores e melhores pilotos de todos os tempos, possuo e li algumas das MUITAS biografias já produzidas sobre Ayrton. Mas, definitivamente, não sou um passador de pano, e acredito sim que o brasileiro foi um piloto falível, eventualmente um piloto sujo na pista. Sim, para mim, a batida com Prost em 1990 foi culpa dele e eu não dou viés de validação a essa batida por ser uma vingança pessoal pela farofada do ano anterior. Cada um com sua consciência, a minha está limpíssima. Não levo revanchismos às últimas consequências como muitos fãs brasileiros fazem, tais como aqueles que adoram deixar mensagens carinhosas nas redes sociais, como "Michael Schumacher está pagando em vida o mal que fez nas pistas da Fórmula 1". Sem mais comentários, esse trecho do texto ficou bem maior do que deveria.

Voltando ao tema do texto.

Não acho que o desfecho da prova de Mônaco foi uma injustiça contra Senna e uma grande conspiração para favorecer Prost. Por alguns motivos, os quais elencarei adiante.

De fato, a chuva que caía em Monte Carlo aquele dia era intensa. Tão intensa que o início da prova foi atrasado em 45 minutos. Alguns pilotos já haviam sofrido acidentes àquela altura do Grand Prix, incluindo um acidente na largada que sacou do campo as duas Renault, de Patrick Tambay e Derek Warwick. Ambos saíram machucados: Tambay quebrou uma perna, e Warwick saiu com escoriações na perna direita, num acidente que também envolveu Andrea de Cesaris e François Hesnault, ambos da Ligier. Nigel Mansell, que chegou a liderar, espatifou sua Lotus no guard-rail na subida após a Saint Devote, e depois na entrada da Mirabeau. E houve outros acidentes envolvendo outros pilotos, como Niki Lauda e do próprio Ayrton Senna, que danificou sua suspensão dianteira direita em uma batida, e ignorou ordens de equipe para não utilizar as zebras dali em diante, deteriorando cada vez mais a suspensão de sua TG184. 

Como afirma o insuspeito jornalista Luis Fernando Ramos neste texto aqui, a chuva, que já era enorme no começo da corrida, se intensificou da volta 20 em diante, e nas voltas anteriores à interrupção, os pilotos já registravam tempos cerca de cinco segundos mais lentos do que já haviam registrado anteriormente. A corrida, de fato, estava perigosa. Inclusive, o carro de Senna corria sério risco de se desmanchar devido a este dano na suspensão em poucas voltas se a corrida não fosse encerrada. Ramos, inclusive, se pergunta no texto acima linkado, o que poderia ter acontecido se o carro de Senna tivesse se desmanchado, por exemplo, na saída do Túnel, citando o gravíssimo acidente de Karl Wendlinger na mesma pista, dez anos depois. Do ponto de vista da segurança, a decisão de Jacky Ickx, como se pode ver, foi absolutamente acertada.

Já a desistência de Alain Prost e suas solicitações efusivas para encerrar a prova? Será que era mesmo só porque queria vencer? Deixo isso para a interpretação do leitor, mas vou elaborar uma digressão no texto para comentar um pouco sobre questões de segurança no automobilismo. 


A princípio, cabe dizer o seguinte: Jo Ramirez, coordenador da McLaren, teria confirmado que Prost vinha sofrendo com problemas em seus freios dianteiros, e estava utilizando apenas os freios traseiros e freio-motor (ou seja, freando o carro utilizando os giros do motor para controlar a velocidade). Em pista seca isso já seria um problema. Em chuva, logicamente ainda mais perigoso. E aqui vou apenas - APENAS - supor que Prost estava informado via rádio acerca do acidente grave envolvendo Warwick e Tambay na primeira volta. Fora os outros acidentes que haviam ocorrido no decorrer da disputa.

Mas cabe também falar sobre outro aspecto relevante.

Alain Prost, àquela época, era um dos principais defensores da causa pela segurança no automobilismo. Os anos 80 e a era Turbo haviam transformado os motores da Fórmula 1, que já eram rápidos, em verdadeiros monstros de desempenho. Mas isso também trouxe sérios impactos na segurança. Mesmo com relativamente menos potência, os anos 70 também haviam sido marcados por acidentes assustadores resultando em morte, como os de Roger Williamson, Ronnie Peterson e Rolf Stommelen, e o famoso acidente em 1976 com Niki Lauda no Nurburgring-Nordschleife, que quase tirou a vida do austríaco e deixou seu rosto irreconhecível.

Os GPs de Mônaco nos anos anteriores vinham sendo corridas especialmente esquisitas no quesito segurança. A edição de 1982 da corrida no principado, aliás, ocorreu logo depois do GP da Bélgica que havia vitimado Gilles Villeneuve de maneira assustadora. E também foi uma corrida de acidentes estranhos. O próprio Prost bateu na saída da Chicane do Porto, num acidente que desmanchou o bólido e teve pneu voando pela pista. Poucos meses depois, o GP da Alemanha de 1982 teve o gravíssimo acidente entre Prost e Didier Pironi, da Ferrari, no qual Pironi encheu a traseira da Renault com força e  capotou algumas vezes antes do carro parar. Não há imagens do acidente, mas o fato é que Pironi ficou preso no carro por bastante tempo antes de ser resgatado. Nelson Piquet, que o socorreu, foi quem retirou o cinto e o capacete de Pironi, e ficou chocado ao ver a imagem angustiante do piloto, que sangrava muito e teve confirmadas sérias lesões em suas duas pernas. O acidente encerrou ali mesmo a carreira de Pironi na Fórmula 1. Importante lembrar, também, que no mesmo ano, morreu Riccardo Paletti no GP do Canadá de 1982, em outro acidente violento. 

É possível dizer que Prost tenha sofrido um transtorno de estresse pós-traumático após todos esses acidentes? Não cheguei a encontrar nenhuma fonte oficial confirmando, mas há evidências de que sim. Inclusive, de posse de tais informações, torna-se compreensível o motivo de Alain ser um dos pilotos que mais tinham dificuldade em condições de pista molhada, que inclusive o tornavam presa fácil em certas corridas históricas disputadas sob chuva nos anos seguintes, como o GP da Inglaterra de 1988 e o GP de San Marino de 1991. Este último, aliás, marcado pela infame rodada de Prost ainda na volta de aquecimento de pneus. Hoje, costumamos achar as corridas sob chuva muito divertidas, pela quantidade de caos e imprevisibilidade que normalmente elas trazem, mas o fato é que correr sob chuva é e sempre foi um grande desafio para a Fórmula 1 em termos de segurança.

Prevejo alguns comentários do tipo "ah, mas a Fórmula 1 sempre foi perigosa, o automobilismo sempre foi esporte de risco, então mortes fazem parte". 

E é verdade, o automobilismo é perigoso pela própria natureza do esporte: pilotos correm uns contra os outros em carros de altíssima velocidade, podendo se estatelar no muro a qualquer momento. Mas as mortes são sempre traumáticas quando acontecem, e põem o esporte em tremendo questionamento sobre sua própria existência, de modo que mudanças em prol da segurança sempre foram necessárias a fim de evitar ao máximo a possibilidade de qualquer acidente mais grave acontecer. Lembremos que o próprio Senna foi tirado de nós muito cedo devido a falhas de segurança. Portanto, nós, como fãs brasileiros, temos a obrigação de ser os primeiros a exigir corridas mais seguras.

Minha conclusão, depois de tudo, é que o Grande Prêmio de Mônaco de 1984 não foi "tirado de Senna". Ele foi interrompido corretamente, sustentado por evidências de que a corrida estava perigosa demais para continuar, em uma categoria já traumatizada por três acidentes assustadores nos anos anteriores, com direito a duas violentas mortes. Seus principais pilotos, como Alain Prost e Nelson Piquet, advogavam por mais segurança nas corridas. Mortes nunca foram admissíveis, mas nessa época, elas definitivamente começaram a se tornar intoleráveis. Ainda bem!

E para a pachecada que adora uma teoria da conspiração, fica a sugestão de reflexão, pois além de tudo que foi apresentado acima, também temos indícios suficientes para concluir que, caso a corrida continuasse, o vencedor poderia muito bem não ter sido o brasileiro àquela tarde.

Haverá quem leia esse texto e siga firme na tese conspiratória? Claro que haverá.

Por mim, sigo cá com minha consciência tranquila.



quinta-feira, 3 de novembro de 2022

"O HOMEM INVISÍVEL" (2020) - RESENHA CRÍTICA




A linguagem do cinema é extremamente multifacetada. É uma forma de arte capaz de despertar no público as mais diversas sensações, atribuir significados através da mera combinação de imagens e sons e literalmente produzir alegria, serenidade, angústia, tristeza... e medo. O medo é um dos sentimentos mais poderosos que um longa pode causar, pois ele literalmente dribla a limitação estabelecida pela tela (a tal da quarta parede) e atinge diretamente o espectador. É muito fácil sentir coisas como felicidade, tranquilidade e humor enquanto se vê um filme. Mas quando se está protegido pela tela, apenas um projeto muito bom e que sabe o que está fazendo pode fazer você sentir o MEDO propriamente dito.

Há muitas formas de um terror fazer isso. Seja apelando a medos alegóricos (figuras naturalmente bizarras, como palhaços, ou os serial killers dos "slashers") ou a assombrações e coisas relativas ao espiritual, não há muito mistério, não à toa esse tipo de projeto é extremamente popular no terror, sendo inclusive temas muito recorrentes nas produções do gênero. Mas o melhor tipo, a meu juízo, é aquele tipo de terror que busca explorar as ansiedades mais reais e palpáveis, como o fato de não conhecermos de verdade as pessoas de quem nos aproximamos, ou literalmente lidar com um stalker (perseguidor). É por isso, por exemplo, que obras como "Psicose" e "Halloween - A Noite do Terror", funcionam tão bem até os dias de hoje, mesmo tendo sobre eles a implacável ação do tempo. Acredito que não haja terror mais eficiente do que aquele que reproduz, em alguma escala, seus medos mais íntimos, que toca em suas feridas mais abertas e se aproveita da sua maior vulnerabilidade. 

E é neste quadro que se localiza "O Homem Invisível", que comentarei a seguir. Lançado em 2020, é uma adaptação do livro homônimo publicado em 1897 pelo autor H.G. Wells, que por sua vez é um clássico da ficção científica. do qual também se originou o clássico filme de 1933. O filme é escrito e dirigido por Leigh Whannell (roteirista de "Jogos Mortais") e estrela Elisabeth Moss, Aldis Hodge, Oliver Jackson-Cohen e Storm Reid. Na trama, Olsen vive Cecilia, uma mulher que foge de seu marido, Adrian (Jackson-Cohen), um cientista pioneiro em ótica, após viver um relacionamento profundamente abusivo nas mãos dele. Logo depois, Adrian supostamente morre, mas coisas estranhas começam a acontecer com Cecília e ela passa a duvidar da morte de Adrian, suspeitar que de alguma forma ele tenha ficado invisível e a questionar sua própria sanidade.

A direção de Whannell é muito eficiente na construção da tensão desde o começo, na casa mostrando como a protagonista se encontra isolada e sempre alerta, indicando que mesmo na aparente quietude, ela está em perigo. O primeiro ato é muito eficaz em estabelecer a situação na qual o filme se desenvolve, com planos longos e bem abertos que deixam claro que o ambiente onde ela vive é extremamente opressor. Há também um contraste entre essas cenas e alguns momentos mais leves entre Cecília, sua irmã e seus amigos, que serve para gerar identificação do público com esses personagens (são muito bons, exceção apenas para a irmã). O ritmo permanece cadenciado até o segundo ato, o que é ótimo, pois vemos uma quantidade cada vez mais bizarra de coisas acontecendo e sentindo a angústia da protagonista, que vai cada vez mais sendo boicotada, privada de sua vida social e literalmente sendo tida como louca (o famoso gaslighting). Tudo isso é muito crível e você se coloca no lugar de Cecília sem muita dificuldade. 

O roteiro é extremamente eficaz em explorar toda a verossimilhança da situação vivida pela protagonista e fundi-la isso com o aspecto da ficção científica. E traz um importante comentário social:  isolamento experimentado pela personagem de Moss não é nada muito diferente do isolamento que muitas pessoas vítimas de relacionamentos tóxicos, em sua maioria mulheres, viveram ou vivem na vida real. A mistura produz um clima de tensão, angústia e paranoia crescentes. O filme, porém, não é perfeito neste aspecto: há uma quebra de ritmo muito evidente do segundo para o terceiro ato, no qual o projeto abandona o ótimo clima de tensão e suspense estabelecidos para dar lugar a uma ação mais direta, com a protagonista finalmente tomando uma atitude sobre tudo o que está vivendo. Eu não exatamente gosto disso, mas acho que funciona para o grande esquema das coisas aqui. 

Gosto, em algum nível, da ironia do filme em mostrar a personagem de Moss tendo que falar coisas como "ele está aqui conosco" ou "foi ele, não eu" em situações que desafiam a lógica e o ceticismo dos outros personagens, numa vibe parecida com a do Andy Barclay em "Brinquedo Assassino". Há certas semelhanças entre os dois projetos, não há como não notar.

Mas nada disso seria possível sem a presença inigualável da atriz Elisabeth Moss. Não, sério, não seria absurdo se todo o trecho sobre atuação desta resenha fosse só sobre ela. Todas as circunstâncias aqui inscritas perpassam sua atuação, que é nada menos do que brilhante. Ela consegue carregar consigo muita verdade e verossimilhança em relação a tudo o que sua personagem passa, todo o pânico e a agorafobia que ela sente, de maneira brilhante. Como o vilão passa o tempo quase todo na invisibilidade, ela precisa fazer muita atuação corporal sozinha, e dá um verdadeiro show. É importante também ressaltar que sua personagem não é o típico estereótipo do protagonista burro de filme de terror: Cecília é esperta, descobre as coisas que precisa descobrir numa progressão lógica e verossímil, o que é sempre muito bem-vindo, e sabe o que precisa fazer para sobreviver aos perigos mais imediatos quando estes se apresentam. No elenco de apoio, Aldis Hodge está muito bem e Oliver Jackson-Cohen nem faz tanta coisa assim durante o filme, mas cumpre um papel importante de maneira bem eficaz no ato final.

Tenho também que dar um destaque ENORME para o design de som e a trilha sonora de Benjamin Wallfisch. O som do filme nas cenas de tensão faz até mesmo cada passo dado pelos personagens parecer perigoso, e dadas as características especiais do vilão, cada mínimo barulho pode ser indicativo de um perigo à espreita. Diante deste quadro, o uso inteligente e minimalista da trilha sonora se faz necessário, e de fato isso é feito. Não há aqui a típica boba pontuação de jumpscares a partir dos acordes de trilha: isto dá lugar ao silêncio quase absoluto, porém muito mais efetivo, quase torturante. Nas cenas mais de ação, há o uso de uma trilha meio bizarra, com notas estridentes, e um pouco mais agitada, porém apropriada.

No fim, "O Homem Invisível" é um ótimo terror de ficção científica com um comentário social muito pertinente sobre relacionamentos abusivos, que me conquistou pela direção eficiente e pelo trabalho maravilhoso da atriz principal. Brilhante trabalho de atualização do clássico que lhe deu origem.

Nota: 9,0


segunda-feira, 31 de outubro de 2022

X-MEN 3: O CONFRONTO FINAL (2006) - RESENHA CRÍTICA


Escrevo esta resenha crítica em meio ao dia mais importante da história política recente do país e eufórico após uma vitória política para mim e alguns de meus chegados, o que é no mínimo inusitado. Comemorar enquanto escreve um texto sobre um filme? Bom, cada um tem sua forma de aproveitar um momento e esse talvez seja o meu.

Isso, obviamente, não salvará "X-Men 3" de levar uma boa surra, pois vou adiantar logo, este filme é ruim pra cacete e eu me envergonho de um dia ter dito para alguém que gostava dele. Sim, eu gostava muito pelos idos de 2014. Mas nos últimos anos eu acabei desenvolvendo um olhar um pouquinho mais sofisticado para cinema, capaz de entender textos com mais nuances narrativas.

Mas antes de começar a falar mal desse filme, acho que é justo compartilhar aqui a minha opinião num geral sobre os X-Men como grupo de heróis e a franquia X-Men no cinema até antes desse projeto ser lançado. Eu goto bastante desta super-equipe e de como ela sempre teve um papel de vanguarda no que diz respeito a discussões políticas neste ambiente de cultura pop e quadrinhos, e eu gosto muito mais e me identifico com eles do que, por exemplo, os Vingadores, que se tornaram muito famosos nos últimos dez anos. Não à toa, depois do Homem-Aranha, o meu personagem favorito da Marvel Comics é o Magneto, que é um excelente personagem e que muitas vezes transcende o papel vilanesco atribuído a ele, tanto nos gibis quanto nos filmes.

"X-Men" foi um baita de um filme, que praticamente inaugurou o grande esquema das coisas no que diz respeito a blockbusters de super-heróis, reunindo um elenco de altíssimo peso e consagrando Hugh Jackman como um dos grandes astros do cinema blockbuster desde então. OK, tecnicamente falando, "Blade" (1998) foi o longa que oficialmente começou a parada toda, mas não há como ignorar que o diretor Bryan Singer estabeleceu um parâmetro para o cinema de franquia de super-heróis, que por sua vez foi posteriormente lapidado por gente Kevin Feige no Universo Cinematográfico da Marvel. Feige, aliás, é produtor de praticamente todos os filmes com personagens Marvel desde "Blade". X-Men 2, por sua vez, é uma continuação sólida que não apenas dá continuidade ao primeiro de maneira satisfatória, mas também expande a discussão sobre tolerância e respeito às diferenças de maneiras até bem pertinentes. E é uma boa adaptação do quadrinho "Deus ama, o Homem mata", de Chris Claremont. E posso dizer que o visual do Magneto nessa trilogia é o meu favorito de todas as representações do personagem em qualquer mídia: elegante, poderoso, um verdadeiro lorde nas ações e nos trejeitos do ator, Ian McKellen, que transborda carisma.

Já o filme sobre o qual falaremos... bem, ele tem uma produção complicada. O diretor Bryan Singer se ausentou do projeto para dirigir "Superman - O Retorno" e deixou a batata assando nas mãos de Brett Ratner, um diretor bem questionável, mas que fez um trabalho até decente em filmes como "Red Dragon" de 2002 e a franquia "A Hora do Rush" (até o segundo filme), mas também produziu a BOMBA chamada "Dragon Ball Evolution". E bem, importante mencionar que depois ele foi acusado de assédio sexual por pelo menos duas atrizes. Portanto, é importante frisar que estamos aqui falando de um vagabundo oportunista e criminoso sexual.

A trama é a seguinte: Magneto está à solta após os eventos de X-Men 2 e continua empenhado em criar um exército de mutantes para dar um sacode na humanidade. O governo dos EUA encontra um garoto capaz de anular e suprimir os poderes dos mutantes e o utiliza para criar uma cura, contra a qual Magneto e seu secto busca se opor. Jean Grey reaparece como a entidade da Força Fênix e se torna uma ameaça para mutantes e humanos, e Wolverine enfrenta um dilema emocional entre o amor que sente por Jean e o provável desfecho no qual ela talvez deva morrer. O cientista responsável pela cura é pai de um mutante que acaba se tornando o Anjo (personagem da equipe original dos X-Men de 1963) e os dois possuem uma rusga mal resolvida, na qual o pai quer suprimir seus poderes, mas o filho quer viver sua própria vida abraçando esses poderes (uma alusão nada sutil a gays saindo do armário, o que não é nada ruim no mérito, mas é bem descompensado na forma). 

Logo de cara, importante notar que o filme é ABARROTADO de tramas e subtramas. Trama demais é sintoma de quê? Isso mesmo, roteiro mal escrito. Muita coisa acontece a todo momento e o roteiro corre demais durante todo o tempo da projeção, eliminando completamente a amplitude dramática. Algumas das tramas são praticamente desligadas do grande esquema do roteiro e não fariam falta alguma se fossem retiradas, é o caso do arco do Anjo e o da Vampira, o que é profundamente lamentável. A direção de Ratner é incompetente e não consegue atribuir nenhuma amplitude dramática a nenhuma das tramas que tenta desenvolver. O material desta sequência já não é muito bom e o diretor não ajuda, desperdiçando MUITO o potencial do elenco que tinha à mão, quase como se ele estivesse fazendo o filme nas coxas e sem muita paciência para dirigir atores. A prova disso é que temos personagem descaracterizado, peronagem subaproveitado, personagem jogado para debaixo do tapete sem mais nem menos... Porra, cadê o Noturno? Ele foi uma das melhores adições à franquia em X-Men 2, com cenas de ação excelentes e um arco dramático convincente... por quê? E aí colocaram no lugar um Múltiplo (Eric Dane) que não fede nem cheira e um cosplay mal-feito do Fanático (Vinnie Jones). O "confronto final" que dá nome ao título do filme é completamente insosso e sem emoção alguma.

As atuações são o que tornam esse projeto suportável de assistir até o fim. O elenco faz o que pode com o que tem em mãos. Hugh Jackman e Halle Berry estão bem, James Marsden está OK e Famke Jamsen faz o que pode com o péssimo script de Jean Grey/Fênix que ela recebe para atuar. E claro, o carisma e personalidade de Patrick Stewart (Professor Charles Xavier) e Ian McKellen (Erik Lehnsherr/Magneto), que são dois atores tão fodásticos que conseguem ter uma baita presença. Embora o personagem de Magneto seja completamente descaracterizado nesta sequência em uma cena tão ruim que me deu câncer, onde ele deixa uma aliada (Mística) para trás sem mais nem menos, LITERALMENTE após ela salvar sua vida, apenas porque ela perdeu os poderes mutantes, o que é um completo desserviço ao personagem de McKellen. É simplesmente terrível de tão ruim, e a Mística some completamente do filme, aparecendo depois praticamente apenas como uma nota de rodapé muito safada que o filme usa só para dizer que não a esqueceu. Uma boa adição aqui é a personagem da Kitty Pride (da ótima Ellen Page, que havia feito MeninaMá.com e que hoje é um homem transgênero, tendo mudado o nome para Elliot), que faz um bom papel como a Lince Negra.

Aliás, vale destacar um período específico para a Vampira: é inacreditável o potencial desperdiçado da personagem de Anna Paquin durante toda a franquia, que é uma crítica recorrente entre os fãs e a própria atriz sempre se sentiu incomodada. A personagem nunca teve uma agência muito preponderante nos filmes de Singer, mas parece que Brett Ratner odeia de verdade essa personagem. Ela tem todo um dilema pessoal com a questão da cura mutante e o filme pinta isso como algo relevante, mas ela DESAPARECE do filme no terceiro ato e aparece depois de tudo resolvido, apenas como nota de rodapé, ao mesmo estilo da Mística. Eu lamento profundamente que esse tenha sido praticamente a última vez de Vampira no cinema. Paquin fez uma participação em X-Men: Dias de um Futuro Esquecido, que foi cortada da versão que foi para o cinema).

Não tenho mais nada pra dizer, esse filme é uma zona de tão ruim e só não é o pior da franquia original porque "X-Men Origens: Wolverine" existe. 

Nota: 3,0

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Hidden Figures (2016) - RESENHA CRÍTICA

Há filmes que são necessários para que lembremos que a barbárie está mais próxima do que talvez imaginemos ou pensemos, seja através do tempo, do espaço ou até dos dois simultaneamente. Afinal, não é incomum ouvirmos bobagens do tipo "o antirracismo hoje em dia é inútil, os pretos já conquistaram seu espaço". Esta afirmação é completamente estapafúrdia e encontra contestação sem que se precise fazer muito esforço. 

"Hidden Figures", filme de 2016 que comentaremos hoje, foi batizado em terras tupiniquins como "Estrelas Além do Tempo". Péssimo nome, preferi utilizar o original, que traduziria como "Figuras Escondidas". O nome oficial brasileiro da obra é, na pior das hipóteses, incompreensível de tão genérico. Zapear pelo streaming e ver esse nome não te traz nenhuma curiosidade especial a menos que você já tenha ouvido falar sobre o filme (foi o meu caso). O projeto é dirigido por Theodore Melfi e este é provavelmente seu projeto mais bem-sucedido até hoje, com indicações ao Oscar para melhor filme, melhor roteiro adaptado e melhor atriz coadjuvante para a já oscarizada Octavia Spencer. 

O filme acompanha a história de três mulheres que trabalham na NASA durante a corrida armamentista da Guerra Fria entre EUA e União Soviética: a matemática Katherine Goble Johnson (Taraji P. Henson), a Dorothy Vaughan (Octavia Spencer) e Mary Jackson (Janelle Monáe), bem como as dificuldades cotidianas que as três encontram para se encaixar em um ambiente completamente opressivo para pessoas "de cor" (sic). E bom, ao contrário do seu título chinfrim, o filme funciona muito bem em trazer toda a aura da sociedade estadunidense do começo dos anos 1960: ainda segregada racialmente por força de lei em vários estados do país. Está tudo muito bem à mostra. O roteiro do filme acerta ao fazer isso de maneira bem escrachada, mas com boas doses de humor ácido, onde se você ri, é de nervosismo e constrangimento. Gosto também que os roteiristas não apelaram para a fórmula fácil de definir as personagens apenas pela opressão: cada uma tem uma personalidade distinta e bem definida.


A cena inicial em que as protagonistas são abordadas por um policial é tensa na medida em que você geralmente sabe o que acontece quando a polícia aborda pessoas pretas, mas é seguida de uma aliviante quebra de expectativa. Daí em diante, o filme não economiza em jogar na nossa cara como essas personagens são oprimidas e o quanto precisam lutar até mesmo nas mais "simples" tarefas cotidianas. Para além das já conhecidas práticas segregadas de utilizar transportes coletivos ou ambientes públicos de modo geral, precisam andar mais de um canto a outro para fazer coisas como ir ao banheiro, não podem tomar café no mesmo bule que os brancos, precisam trabalhar às cegas com dados parciais que se desatualizam rapidamente e não podem nem assinar relatórios. Isso quando não são confundidas com zeladoras/faxineiras. A composição das cenas faz sempre questão de mostrar o isolamento dessas personagens em um ambiente que a todo tempo faz questão de deixar claro que elas não são bem-vindas, seja no enquadramento de câmera, na disposição dos personagens em certas cenas e até nas cores das roupas. Trabalho primoroso de direção de atores, fotografia e figurino. As cenas em que vemos a protagonista principal correr quase 1km para ir ao banheiro porque não havia banheiros disponíveis para ela no prédio onde trabalhava são cortantes e culminam naquela que provavelmente é a melhor cena do filme.

Tudo isso é viabilizado por um poderoso elenco. Taraji P. Henson emociona demais como Katherine Goble, mostrando uma performance sensível a todas as opressões cortantes sofridas pela personagem, mas com muita força de vontade para fazer aquilo que acha certo até estourar suas emoções. Octavia Spencer é brilhante ao mostrar em Dorothy Vaughan uma personagem preta em posição de poder, mas ainda muito tolhida em relação a seus colegas brancos em posições similares e que faz questão de deixar isso muito claro. Janelle Monáe é muito eficaz como Mary Jackson, pois consegue imprimir toda a gana e vontade de sua personagem em aprender e se tornar uma cientista mais capaz, mas dando de cara com o sistema educacional bastante segregado e um sistema judicial ainda cambaleante em tolher tal segregação (lembremos que as leis federais dos EUA geralmente possuem jurisdição fragmentada nos estados até os dias de hoje). 

O elenco de apoio é também especial e com alguns nomes de peso: Kevin Costner constrói um chefe durão, porém sensível em algum nível às questões raciais e que se mostra um bom mentor para Katherine. Kirsten Dunst e Jim Parsons são muito eficazes como figuras de poder autoritárias e repletas de preconceitos raciais (embora seja difícil não ver a Mary Jane em Dunst e Parsons esteja só reprisando em alguns níveis o Sheldon Cooper de "The Big Bang Theory"), enquanto Mahershala Ali interpreta Jim Johnson como um bom personagem em desconstrução ideológica enquanto serve como par romântico para a protagonista principal. Gosto demais de Aldis Hodge, a composição de seu Levi Jackson, como um personagem que anseia lutar num ativismo direto ao mesmo tempo em que precisa mudar suas próprias concepções ideológicas em relação ao trabalho da esposa.

De resto, acho que preciso comentar a hipocrisia da frase principal que geralmente é entendida deste filme, que é "Nunca deixe de lutar". Convido a todas e todos vocês, meus (poucos) leitores, a uma reflexão crítica. Será que este lema deveria realmente ser o objetivo da população preta? Ora, o objetivo principal deveria ser a criação de um mundo onde os preconceitos de classe/raciais não mais teriam sequer condições de existir, no qual a necessidade de lutar se tornaria, portanto, obsoleta. Ora, a sociedade que até aquele momento melhor representava tais perspectivas de superação do racismo, embora não desprovida de contradições, era justamente a União Soviética e o ideal comunista... que os estadunidenses capitalistas e a NASA - capitalistas - combatiam. O "melhor" comentário que o filme tem a fazer sobre isso é chamar os soviéticos de "canalhas" sem um pingo de ironia sequer pela voz do personagem Al Harrison, de Kevin Costner. 

O preconceito racial prosperou, prospera e prosperará enquanto formos subjugados por um regime baseado na expropriação e na exploração do homem pelo homem.

Ainda assim, "Hidden Figures" é um ótimo filme, com comentário social sólido e importante sobre o racismo de um modo geral e que ganha força pelo seu sólido roteiro, elenco impecável e direção precisa, mas também pelo fato de ser um filme que dificilmente deixará de ser atual a curto prazo.

Nota: 9,0

domingo, 21 de agosto de 2022

Cruella (2021) - RESENHA CRÍTICA


Desde criança, sempre gostei de desenhos da Disney, embora nunca fossem os meus favoritos. Tom & Jerry sempre foi meu carro chefe, seguido do Pica-Pau e dos desenhos da Looney Tunes, especialmente Papa Léguas & Coyote. Dos clássicos Disney, "O Rei Leão" é de longe o meu favorito de sempre, com uma história belíssima cheia de alegorias a maturidade e sobre como devemos assumir as responsabilidades que se apresentam. Nunca vi muito, porém, o desenho "101 Dálmatas" de 1997, do qual se originou o filme que comentarei nesse texto se apresenta, porém vi alguns episódios e de fato era muito divertido ver as aventuras dos cães pintados contra a malvada Cruella de Vil.

O filme do qual falaremos, porém, ensaia jogar um olhar bem mais profundo e interessante sobre esta personagem. Lançado em 2021 e dirigido por Craig Gillespie (também dirigiu o ótimo "Eu, Tonya"), "Cruella" conta a história de Estella (Emma Stone), uma garota de cabelo peculiar e muitos sonhos, mas que come o pão que o diabo amassou no processo de realizá-los e que descobrirá os dissabores do mundo da moda da pior forma, e segredos terríveis sobre si mesma, na qual pouco a pouco se tornará a clássica vilã. A Disney tem acertado em cheio nas repaginações que tem feito de seus vilões, trazendo-os como figuras trágicas e complexas no lugar das abordagens malvadas típicas. E aqui não é diferente. 

A natureza do roteiro de "Cruella" é relativamente simples: trata-se de uma narrativa shakesperiana de tragédia e sucessão hereditária de poder, o que não deixa de ter seu aspecto de clichê. Mas o filme é escrito de uma forma que o espectador desavisado acaba não percebendo até que a revelação principal aconteça, e ela é impactante. Um jogo de gato e rato no qual a protagonista vai cada vez mais submetendo a antagonista Baronesa (Emma Thompson) a sucessivos constrangimentos e deixando claro que o reinado da rival no mundo da moda está prestes a colapsar. 

Falando em moda, é difícil assistir a este projeto e não ficar encantado/deslumbrado com a parte de figurino. O filme é quase inteiro um desfile de moda, pois os momentos mais impactantes quase todos giram em torno de figurinos espalhafatosos belíssimos e apaixonantes, criados pela figurinista britânica Jenny Beavan. A parte visual do filme é também muito boa, com a fotografia retratando uma Londres pitoresca e em um processo de transformação urbana quase tão marcado quanto os maravilhosos figurinos de Beavan, com certo contraste entre a arquitetura clássica e a arquitetura mais contemporânea da segunda metade do século XX.

O filme explora de maneira muito contundente a relação opressiva entre a Baronesa e suas designers do ateliê de moda, na qual ela extrai e expropria completamente os resultados do árduo trabalho dos designers, os tratando sempre como ativos dispensáveis, o que vai deixando o espectador com cada vez mais abuso dela e consequentemente mais simpáticos à ação sabotadora de Estella/Cruella. Há toda uma construção de perfil narcisista e capitalista selvagem da personagem de Thompson que funciona muito bem tanto para efeitos dramáticos inerentes ao próprio filme, quanto para leituras críticas externas a ele. Afinal, se você trabalhou no setor de criação de uma empresa, sabe muito bem que o que você cria no âmbito do trabalho não é seu, e sim pertence a quem paga seu salário, que provavelmente usará sua criação para gerar valor e mais valor para ele próprio.

Gosto que este filme consegue reproduzir uma atmosfera cômica similar às animações sem necessariamente tentar apelar para aspectos que fatalmente fariam o projeto parecer muito caricato, como vários live-actions dos anos 1990 (tipo "O Máskara" ou "Uma Cilada para Roger Rabbit") fizeram ao incluir efeitos especiais e sonoros de desenhos. Em vez disso, aposta-se muito na comédia ácida e na direção dos atores para extrair algo leve e ao mesmo tempo emocional e sensível. Contudo, a direção às vezes parece passar por uma confusão tonal, ao passo que parece não ter tanta clareza naquilo que quer passar. Trama adulta? Comédia? Caricatura? O filme transita por essas três searas, nem sempre da melhor maneira.

Por falar em atores, o elenco dá um show. As já citadas Emma Stone e Emma Thompson são a dupla principal e estão irretocáveis. Stone consegue fazer sua Cruella ser muito identificável em quase todos os aspectos, desde a moça desajeitada e socialmente desfavorecida até a predadora amante da moda que ela se torna, mas sem tentar justificar suas atitudes mais vilanescas. Já Thompson atribui à Baronesa um efetivo poderoso ar de superioridade, com todos os já citados tiques de narcisismo e de empresária bilionária (bilionário tem que se foder, lembremos) que realmente funcionam muito bem. O elenco de apoio também funciona muito bem, Joel Fry e Paul Walter Hauser fazem a icônica dupla Horace e Jasper, e conseguem atribuir a esses dois personagens toda a aura de capangas atrapalhados divertidos que tinham na animação, mas também acrescenta uma personalidade questionadora aos dois, ao passo em que presenciam as crescentes contradições da protagonista. Temos também as boas presenças de John McCrea, Kirby Howell-Baptiste e do sempre confiável Mark Strong (de "Sherlock Holmes" e "Shazam").

Ao final da exibição, "Cruella" é um filme divertidíssimo e envolvente em vários aspectos, que se por um lado é por vezes confuso no tom desejado (às vezes muito adulto para ser Disney ou muito Disney para ser adulto e os dois tons nem sempre conversam muito bem) e com certeza clichê em alguns momentos (a narrativa é derivativa, embora se venda como original) por outro lado como pontos altos o visual estonteante do figurino e a atuação da dupla principal. Vale a pena? Com certeza.

Nota: 8,5