Outro filme complicado de falar a respeito. Talvez até mais do que “Nós”. A princípio, é bom que se diga duas coisas: Não é um projeto para todos os tipos de público, e acho que este fato é ululante. O outro fato é que é um longa de narrativa muito mais complexo do que o comum, e mais ainda: não há, em momento algum, uma resposta clara sobre o que é que estamos vendo em tela.
Os fãs mais fervorosos de “Mãe” alegam que é uma grande obra incompreendida, e depois de ter visto o que vi, com as informações que tinha previamente, é seguro dizer que estes fãs não estão errados. A partir do momento em que você tem uma ideia clara da premissa do filme a partir de um mínimo de informação sobre qual é, na verdade, o objetivo do projeto, todos os enigmas parecem muito mais claros. É quase como jogar um jogo de videogame tendo em mãos o detonado completo.
Isso, ao mesmo tempo, tanto engrandece o projeto quanto o deixa um pouco menor. Engrandece, pois o torna uma obra de arte brilhante, quase como uma pintura renascentista feita nos tempos atuais. Mas há uma regra do cinema cuja menção acredito ser válida aqui: um filme deve se bastar em sua linguagem cinematográfica e funcionar pelos próprios méritos. Assim, se um espectador desavisado vai assistir a esse projeto, as chances de frustrar-se são grandes e, em tese, não é possível culpa-lo. Portanto, por este ponto de vista, é compreensível que tenha havido rejeição ao filme. Afinal, como dito no começo, este não é um projeto para qualquer tipo de público.
A coisa que mais me assombrou, porém, foi a reação da crítica, de quem normalmente se espera mais apuro ao emitir opiniões sobre cinema. Pois, analisando em retrospecto, é um daqueles filmes que se engrandecem cada vez mais e mais com o tempo e os debates. Em suma: a sensação que tenho ao escrever esse texto é a mesma de quando vi “Corpo Fechado”, de M. Night Shyamalan, ou “Amnésia”, de Christopher Nolan; “Mãe” talvez venha a ser considerado, posteriormente, um filme MUITO à frente de seu tempo.
Este é, sem dúvida, um filme único em todos os aspectos. “Mãe” é um projeto que traz consigo uma carga de perturbação muito peculiar e em vários níveis diferentes, que vão se progredindo gradativamente e de forma extremamente absurda, mas ainda assim parecem muito críveis ao passo em que a imersão consegue nos fazer sentir exatamente o mesmo que a protagonista está sentindo.
Nisso, é possível perceber o dedo extremamente meticuloso do diretor-roteirista. Darren Aronofsky sabe conduzir com maestria todos os elementos disponíveis. O roteiro começa de forma parcimoniosa, apresentando os dois personagens principais de forma bem lenta e já nos coloca de cara na perspectiva da personagem Mãe, de Jennifer Lawrence. Logo depois, apresenta sua relação com Ele, personagem do Javier Bardem. Isso se resolve nos primeiros quinze minutos. Daí em diante, Aronofsky começa a introduzir cada situação absurda uma após a outra, de modo a aumentar gradativamente a tensão sentida pela Mãe, que passa tanto pela impertinência dos personagens que vão aparecendo ao longo do filme, como os de Ed Harris e Michelle Pfeiffer, quanto pela arrogância e vaidade d’Ele. A Mãe, a partir daqui, começa a perder cada vez mais espaço perante os outros personagens e isso é extremamente angustiante, e vai se tornando cada vez mais insuportável até que quando o estopim acontece, ele parece até ser cruel, mas é uma aliviante catarse. Uma construção de roteiro monstruosamente impecável, como uma reta perfeita desenhada sem régua num quadro negro com aquele barulhinho estridente incômodo.
E é porque ainda nem rasguei seda para as atuações. Não se preocupem, pois isso vai começar agora. QUE ELENCO MARAVILHOSO, MEUS CONSAGRADOS! Jennifer Lawrence consegue transitar com naturalidade entre todas as sensações que se espera de alguém na situação de sua personagem. Aversão, indignação, tensão, medo, angústia, desespero, pânico... Tá tudo lá. Ajudam nisso os planos extremamente fechados no rosto da personagem, que tanto mostram suas expressões faciais quanto escondem muito do que está ao redor, o que aumenta duas coisas essenciais num terror psicológico: claustrofobia e medo do que não está sendo mostrado. Javier Bardem consegue passar sensações distintas fazendo muito pouco. Pode-se perceber que seu personagem inspira confiança a Mãe, em menor ou maior degrau ao longo do filme, mas ao mesmo tempo é tão vaidoso e centrado em si que várias de suas atitudes são extremamente incômodas tanto para ela quanto para o público. Ed Harris é muito funcional e seu personagem é uma ponte que nos liga a todos os conflitos que ocorrem na sequência, e a julgar pela meticulosidade do projeto isto é proposital. Mas o grande destaque é mesmo a Michelle Pfeiffer. Sua personagem é como aquele som fininho e agudo de alta frequência. Ela chega com os dois pés na porta, cheia de marra e sua presença é extremamente cativante ao mesmo tempo que incomoda pela impertinência.
A se destacar também a total ausência de trilha sonora, um ponto extremamente positivo. Todo tipo de barulho no filme é diegético e isso é ÓTEMO, pois converge com o tom absurdista. A fotografia também é angustiante, pois transita dos tons suaves aos mais opressores sem muita demora, o que também é ajudado pela claustrofobia já citada, e esta só vai aumentando no decorrer do projeto.
E bem... não falar do aspecto metafórico desse filme seria um insulto. Como já dito, é um filme que oferece uma experiência multifacetada ao extremo. Mas para aproveitar todas estas facetas, não é possível ir ao cinema apenas de mente aberta. Para aproveitar ao máximo a experiência que o projeto quer passar, é inexoravelmente necessário ter uma noção básica de qual (ou quais) metáfora(s) o autor quer nos transmitir. A princípio, para quem lê um pouco sobre o filme antes de assisti-lo, é inevitável encará-lo com base na alegoria cristã, com toda a história desde o Gênesis ao Apocalipse. Há pistas ao longo de “Mãe”, do começo até os créditos finais, que deixam isso indubitavelmente claro. Podem aparecer várias outras ao longo do projeto? Podem... e todas são absolutamente legítimas. Mas sabe por que? Porque à parte da alegoria cristã, que é a mais gritante, todo o imenso campo metafórico do filme é deixado livre para que nós, o público, o exploremos. É como assistir ao filme “IT – A Coisa”, só que sem a cidade, sem o palhaço e sem medos ou experiências muito específicas sendo abordadas com um enviesamento tão fechado em uma história própria, como no longa de Andy Muschietti.
Em resumo, este projeto é, ao mesmo tempo, três coisas, a depender de como você se preparou – ou não - para vê-lo:
1. uma história bíblica fechada;
2. um filme cheio de crítica social, sobretudo a como a sociedade trata as mulheres;
3. o que você imaginar que seja, com base em suas próprias experiências pessoais. Até mesmo se você o achar uma bosta de filme. Isso depende de você.
Com tudo isso, é possível dizer que Aronofsky criou uma obra de suspense e horror absolutamente atemporais. E, ao mesmo tempo, um belo quadro renascentista.
Um brinde a “Mãe”. Um brinde à mãe.
Que obra brilhante.
Nota: 9,5